Trump Mira o BRICS: A Índia é o Novo Alvo da Guerra Tarifária dos EUA

por Maria Luiza Falcão

Donald Trump está em guerra. Mas não com os velhos inimigos da Guerra Fria, e sim com os parceiros do BRICS, um bloco que representa um novo centro de gravidade econômica no mundo. Depois do tarifaço imposto ao Brasil, agora é a Índia quem sente o peso da retaliação disfarçada de política comercial. O motivo? Continuar comprando petróleo russo, como fazem os Estados Unidos e a União Europeia, mas sem a hipocrisia imperial que confere imunidade aos países do Norte Global.

Em resposta à ameaça de aumento “substancial” das tarifas norte-americanas, o governo indiano não hesitou: chamou a posição dos EUA de “injustificável e irracional”. Em nota oficial, o Ministério das Relações Exteriores da Índia foi direto ao ponto: “As nações que criticam a Índia são as mesmas que continuam comercializando com a Rússia”. O padrão duplo de Washington não será engolido calado.

Os dados falam por si. Em 2024, a União Europeia negociou 67,5 bilhões de euros em bens com a Rússia, com importações recordes de gás natural liquefeito (China Daily). Já os EUA seguem comprando urânio hexafluoreto para sua indústria nuclear, paládio para a produção de carros elétricos, fertilizantes e químicos russos. Mas Trump escolheu punir a Índia, que só passou a importar petróleo russo depois que os fluxos tradicionais foram redirecionados para a Europa –  ironicamente, com o incentivo do próprio governo norte-americano.

A diferença entre a Índia e os países do Ocidente é que ela não faz parte do “clube seletivo” da  Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Faz parte do BRICS, e isso, para Trump, é motivo suficiente para apertar os parafusos. O tarifaço contra o Brasil foi o primeiro tiro. Agora a ofensiva avança sobre Nova Délhi, em uma tentativa clara de minar a coesão do bloco que ousa propor alternativas à hegemonia do dólar e das instituições financeiras dominadas pelo Norte Global.

O gesto de Nova Délhi, no entanto, tem sido de firmeza. O primeiro-ministro Narendra Modi, em comício recente, respondeu com nacionalismo econômico: “Só compraremos o que for feito com o suor dos indianos”. O governo também sinalizou que continuará comprando petróleo russo. Os dados sustentam a posição: o comércio bilateral entre Índia e Rússia saltou para US$ 68,7 bilhões em 2024-25, contra apenas US$ 10,1 bilhões no pré-pandemia de acordo com dados da Embaixada Indiana em Moscou.

Economistas e diplomatas indianos, como Biswajit Dhar e Amit K. Biswas, denunciam que as tarifas de Trump violam o espírito da relação bilateral com os EUA, que busca ampliar o comércio mútuo de US$ 186 bilhões para US$ 500 bilhões até 2030. Não por acaso, os produtos que podem ser atingidos vão desde têxteis e farmacêuticos até diamantes e derivados de petróleo –  áreas nas quais a Índia é altamente competitiva. Trata-se, portanto, de uma manobra geopolítica, e não de um problema técnico de comércio internacional.

Trump quer punir quem se recusa a obedecer cegamente a sua cartilha, e o BRICS, com sua defesa da multipolaridade, de moedas alternativas ao dólar e de alianças Sul-Sul, é um incômodo crescente.

A China, diante da qual os EUA recuaram em suas tarifas por dependerem fortemente de sua indústria e consumo, foi “poupada” por ora. O mesmo não se aplica ao Brasil e à Índia, tratados como alvos fáceis.

Com relação à China o que está por trás do recuo de Trump?

Reportagem de Zhong Nan, publicada no China Daily em 5 de agosto de 2025 é bastante esclarecedora.

Segundo ele, em tempos de incerteza geopolítica e instabilidade econômica, um ponto de convergência entre grandes multinacionais norte-americanas e a lógica do desenvolvimento global permanece cristalino: a importância da China. O CEO da FedEx, Rajesh Subramaniam – que também preside o Conselho Empresarial EUA-China (USCBC) – foi direto ao ponto: o crescimento econômico da China é vital para a prosperidade mundial e a estabilidade das relações comerciais entre os dois países é essencial.

A declaração segue-se a uma missão de alto nível do USCBC a Pequim, com participação de gigantes como Apple, Boeing, Goldman Sachs e Otis. O objetivo? Reforçar os laços comerciais bilaterais e defender um ambiente previsível para os negócios norte-americanos em solo chinês. A visita confirma aquilo que analistas econômicos têm afirmado com frequência: a China não é apenas um mercado estratégico. É, cada vez mais, um pilar de estabilidade e inovação para empresas que desejam manter sua competitividade global.

Enquanto os fluxos de investimento internacional encolhem, a presença estrangeira na China cresce. Dados da Administração Geral de Alfândegas mostram que, apenas no primeiro semestre de 2025, o número de empresas estrangeiras com negócios de comércio exterior na China chegou a 75 mil — o maior número desde 2021. Uma resposta objetiva ao mito da “desglobalização”.

Além de sua vasta base de consumidores, a China tem se destacado por um sistema industrial altamente desenvolvido, políticas de incentivo à inovação tecnológica e avanços expressivos em inteligência artificial e sustentabilidade. A FedEx, por exemplo, opera mais de 300 voos internacionais semanais de e para a China, e aposta em cadeias de suprimentos inteligentes, plataformas digitais e automação no país.

Segundo relatório divulgado pelo USCBC em julho, 82% das empresas americanas associadas reportaram operações lucrativas na China em 2024. Mais impressionante ainda: quase todas afirmaram que não conseguiriam manter sua competitividade global sem suas operações no país asiático.

No plano diplomático, há sinais de trégua. Na mais recente rodada de negociações comerciais, realizada em Estocolmo, EUA e China concordaram em manter a suspensão de tarifas recíprocas — atualmente na casa dos 24%. O porta-voz do Ministério do Comércio chinês, He Yadong, afirmou que o país deseja continuar usando o mecanismo de consultas bilaterais para buscar soluções de “ganha-ganha”.

Gao Lingyun, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, aponta que a continuidade do diálogo entre EUA e China reduz incertezas nas cadeias globais de suprimento, fomenta a inovação em tecnologias verdes e digitais e fortalece o comércio de bens e serviços.

Empresas norte-americanas como a Cummins Inc, fabricante de motores, anunciou o lançamento de novos produtos na China já em 2026, incluindo motores elétricos e sistemas de controle integrados. Nathan Stoner, executivo da empresa no país, diz que o objetivo é acompanhar a expansão das montadoras chinesas rumo ao Sudeste Asiático e à Europa , uma parceria industrial que pode beneficiar ambos os lados. É óbvio que essas empresas não vão atender ao clamor de Donald Trump para voltarem para casa.

A China, em suma, não é um “risco geopolítico”. É um motor econômico, um parceiro industrial e um território estratégico para a sobrevivência das empresas norte-americanas no século XXI. Se Washington deseja estabilidade, inovação e crescimento, precisa abandonar a retórica belicista e aceitar o óbvio: o mundo será multipolar. E Trump vai passar. É difícil mas é preciso perseverar!

A realidade é mais complexa do que o ego de Trump comporta. O que está em curso não é apenas uma disputa comercial, mas uma reconfiguração das alianças globais. A tentativa de isolar ou intimidar o BRICS – seja por tarifas, sanções ou chantagens – tende a fortalecer os laços entre seus membros. E com a aproximação da COP 30, a ser realizada em Belém do Pará, o Brasil o BRICS pode ocupar posição central em uma nova agenda global, onde soberania energética, segurança alimentar e justiça climática não sejam reféns do protecionismo disfarçado dos Estados Unidos.

Ao mirar no BRICS, Trump não está apenas declarando guerra tarifária. Está reconhecendo, ainda que involuntariamente, que o mundo está mudando. E esse novo mundo, mais plural e menos submisso, está decidido a resistir.

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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Last Update: 07/08/2025