Nunca é tão fácil perder-se como quando se julga conhecer o caminho
Provérbio popular chinês
- Herdamos de Lenin uma teoria sobre a natureza do imperialismo. Ela estava centrada, essencialmente, em três ideias diferentes, embora associadas. A primeira era que o imperialismo era um estágio de desenvolvimento do capitalismo, sua fase superior ou mais elevada de maturidade, inaugurando, dialeticamente, seu apogeu e início da decadência, ou uma época revolucionária. Em outras palavras, um critério de periodização. A segunda era a caracterização de que o mercado mundial estava hierarquizado entre as potências imperialista no centro, e uma grande periferia de nações dominadas, ainda que com graus de inserção variados, muitas colônias, algumas semicolônias e poucos países independentes, ou seja, um rígido sistema internacional de Estados. Em outras palavras, uma ordem mundial. A terceira era a definição de critérios do que seria um Estado imperialista no século XX, distinto de outras formas de imperialismos. Em outras palavras, uma “régua” para caracterizar o tipo de inserção no mercado mundial e papel no sistema de Estados.
- As três ideias elaboradas em distintos graus de abstração permanecem poderosas. A mais audaciosa foi a tese de que o imperialismo contemporâneo abria uma época de auge e, ao mesmo tempo, de declínio do capitalismo. Ela permanece irrefutável porque passou a prova no laboratório da história. A ordem imperialista mergulhou a humanidade em duas guerras mundiais devastadoras. O século XX foi um século de revoluções que deslocaram a dominação do capital em sociedades em que viviam algo em torno de 30% da população mundial. A preservação de uma ordem imperialista ameaça a sobrevivência da humanidade por, pelo menos, quatro razões: (a) o perigo de novas crises econômicas destrutivas como as de 1929 e 2008; (b) a ameaça do aquecimento global e a impotência capitalista de realizar uma transição energética de emergência; (c) a corrida armamentista e a intimidação militar da Tríade, em especial dos EUA, de preservação de sua supremacia; (d) a ascensão de uma extrema-direita neofascista e nacional imperialista que luta pelo poder subvertendo todas as conquistas democráticas das últimas três gerações.
- Lenin não era um “profeta” infalível. A sua obra nos deixou alicerces metodológicos “graníticos”, mas seu legado nos deixou, essencialmente, um quadro de análise de tendências e contratendências, não uma doutrina “milenarista”. Bom marxismo faz aposta em prognósticos, mas não é “adivinhação”. Parece incontornável reconhecer que as outras duas teses exigem atualização. Nem a ordem mundial é remotamente a mesma, e já passou por mudanças qualitativas mais de uma vez, nem os critérios de aferição do que é um Estado imperialista ficou intacta. Mais de cem anos depois, a realidade do mercado mundial e do sistema de Estados mudou. A morfologia da ordem imperialista não é mais a mesma, ficou mais complexa. Há cinquenta anos, desde 1975 no Vietnam, não triunfou mais nenhuma revolução socialista. Trinta e cinco anos nos distanciam da restauração capitalista na ex-URSS e Leste Europeu. O sistema internacional de Estados não se divide mais somente entre Estados imperialistas centrais rivais e uma extensa periferia. As localizações intermediárias são muitas e variadas. No modelo de Lenin do livro de 1916 ainda não existia a URSS, nem o fim da ocupação europeia da África e Ásia, nem Breton Woods, o FMI, o Banco Mundial, o lugar do dólar no entesouramento mundial, e a montanha de trilhões de capitais fictícios gerados pela hegemonia da estratégia neoliberal, ou as Nações Unidas e seu sistema de OMC, OMS, Unctad, Unesco, Tratado de Paris e Tribunal Penal Internacional. Nem a União Europeia, nem um Israel imperialista, nem um novo imperialismo russo excluído do G-7, nem os Brics, muito menos a China como segunda potência mundial. Insistir em uma defesa da “letra” da obra de Lenin, e não no método de análise seria teimosia dogmática. Há muito mais leninismo em uma atualização da teoria do imperialismo do que na defesa obtusa do livro de 1916.
- Em perspectiva histórica, a rigor, já é possível avaliar que, no interior da época imperialista se sucederam, pelo menos, três etapas políticas da ordem mundial. A primeira e mais convulsiva, em que prevaleceram as rivalidades entre as grandes potências, e triunfou a primeira revolução socialista se estendeu até ao final da Segunda Guerra Mundial. A segunda se inicia com a derrota do nazifascismo, e se caracteriza pela colaboração entre as potências imperialistas diante do perigo colocado pela ameaça de revolução, e a coexistência pacífica com Moscou: começou com grandes vitórias, e terminou com o fim da URSS. A terceira se abriu com a derrota histórica da restauração capitalista, passou pela expansão da globalização do capital que culminou na crise de 2008, atravessou uma década de estagnação econômica agravada pela pandemia, e se estende até hoje com a ascensão da China e a ofensiva da extrema-direita neofascista.
- Quando se afirma que o mundo se estrutura, pelo menos nos últimos cento e vinte anos, como uma ordem imperialista não estamos afirmando que exista um governo mundial. O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais dos seus Estados imperialistas e permanecem, portanto, rivalidades entre as burguesias dos países centrais nas disputas de espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos. Não se confirmou a hipótese de um ultraimperialismo, discutida na época da II Internacional: uma fusão dos interesses das burguesias dos países centrais. Permanecem intactas disputas entre as burguesias de cada uma das potências, e os conflitos entre frações em cada país, como e evidencia no conflito entre os EUA de Trump e a União Europeia. Mesmo durante a etapa político-histórica do pós-guerra, no contexto da chamada guerra fria, entre 1945/1991, quando o capitalismo sofreu a onda de choque de uma poderosa onda revolucionária que subverteu os antigos impérios coloniais. Mas seria absurdo não reconhecer que a contrarrevolução imperialista aprendeu com a história. Os EUA associado ao Reino Unido, Canada, Austrália e Nova Zelândia mantém uma aliança prioritária no centro da Tríade com relações complementares com a União Europeia e Japão. O centro da crise no mundo é que esta supremacia está ameaçada, porque há o perigo de uma estagnação econômica no médio prazo. A aposta na inteligência artificial e em outras inovações tecnológicas não parecem ser suficientes para bloquear a ascensão chinesa que compete de igual para igual com a Tríade. Do que decorre a necessidade de uma estratégia nacional-imperialista dos EUA de fortalecimento de uma hegemonia militar dissuasiva.
- Prevalece no mundo uma inequívoca liderança política norte-americana há setenta e cinco anos, mas esta supremacia não dispensa a necessidade de negociações. Os conflitos entre os interesses dos EUA, Japão e Europa Ocidental levaram Washington a, por exemplo, romper, parcialmente com Bretton Woods, em 1971, e suspender a conversão fixa do dólar com o ouro, desvalorizando sua moeda para defender seu mercado interno, e baratear suas exportações. A concorrência entre corporações e a competição entre Estados centrais não foram anuladas, embora o grau em que se manifestam tenha oscilado. A atual ofensiva das tarifas liderada por Trump são mais um capítulo nessa trajetória de dominação. Mas seria obtuso não reconhecer que as burguesias dos principais países imperialistas conseguiram construir um centro no sistema internacional de Estados, depois da destruição quase terminal da II Guerra Mundial. Ele se expressa ainda, institucionalmente, trinta e cinco anos depois do fim da URSS, pelas organizações do sistema ONU e Bretton Woods, portanto, através do FMI, do Banco Mundial, OMC, e BIS de Basileia e, finalmente, no G7. Neste centro de poder está a Tríade: os EUA, a União Europeia e o Japão. União Europeia e Japão têm relações associadas e complementares com Washington, e aceitam a sua superioridade desde o final da II Guerra Mundial. A mudança de etapa histórica internacional em 1989/91 não alterou este papel da Tríade e, em especial, o lugar dos EUA. Embora sua liderança tenha diminuído, ainda prevalece. O peso de seu mercado interno; o apelo do dólar como moeda de reserva ou entesouramento; a superioridade militar; e uma iniciativa política mais ativa permitiram, apesar de uma tendência de debilitamento, manter a posição de liderança no sistema de Estados.
- Duas grandes e equivocadas visões de mundo dividem a esquerda sobre o significado da atual ordem mundial. A primeira é aquela que nivela o projeto da China com a estratégia dos EUA e avalia que a atual “guerra fria” seria antessala, em algum momento no futuro, de uma Terceira Guerra Mundial. Simplificar a ordem do século XXI com o modelo de cem anos atrás, em que prevalecia a disputa inter-imperialista entre Inglaterra/França e Alemanha, atribuindo ao conflito entre os EUA e a China, um significado equivalente é um erro. A comparação do papel da China com o lugar da Alemanha ou do Japão do século XX é um anacronismo. A China não é uma Alemanha se preparando para a guerra mundial em “câmara lenta’. Não estamos nos anos trinta do século passado em “câmara lenta”. Na China triunfou uma das maiores revoluções sociais camponesas e anti-imperialistas da história, a burguesia foi expropriada e fugiu para Taiwan. Uma transição pós-capitalista se iniciou e, apesar de uma restauração capitalista controlada, gerando um híbrido histórico que combina relações de mercado com planejamento econômico, nem a burguesia interna, nem a burguesia chinesa na diáspora controlam o Estado. O Estado é domínio do partido comunista que se preservou apesar de lutas internas trágicas. Na China, muito diferente da Rússia, o estrato social que assumiu o poder com a revolução em 1949, uma burocracia, ideologicamente, socialista, não deixou que o fortalecimento da burguesia interna destruísse as conquistas da revolução. O Estado chinês é uma potência econômica emergente e, crescentemente, militar e espacial, mas prevalece uma estratégia defensiva de acumulação de forças e preservação de posições. A potência que ameaça o mundo são os EUA.
- Por outro lado, reduzir toda esta complexa realidade a uma luta entre a Tríade e um Sul Global de países, genericamente, semicoloniais é absurdo. A China não faz parte de um romantizado Sul Global e, se não ameaça com intervencionismo imperialista, aproveita-se das vantagens comerciais com relações desiguais de troca com a África, América Latina e Oriente Médio, através do comércio de commodities. A existência dos Brics é um ponto de apoio para os países periféricos, mas não vai além, por enquanto, de uma articulação econômica defensiva, diante da ameaça da Tríade. A atual ordem mundial não se explica por estes dois modelos. A definição de Estados imperialistas apoiada em critérios quase exclusivamente econômicos parece anacrônico. A Tríade domina o sistema de Estados, mas sua hegemonia no mercado mundial diminuiu. A Rússia depende de extração de petróleo e gás, mas é a segunda potência nuclear, ou um imperialismo subalterno que mantém influência da Bielorrússia até a Quirguízia. A China é a maior economia industrial do mundo e uma potência mundial em ascensão. A Índia tem armas atômicas, o Paquistão tem arsenal nuclear, o Irã é um país com influência subimperialista no Líbano, Iraque e Yemen, sem falar no papel da Turquia e da Arábia Saudita no Oriente Médio, a resiliência da Venezuela independente com as maiores reservas petróleo, ou até mesmo da localização do Brasil no Mercosul.
- Quais são critérios que permitem qualificar um país como imperialista? Qual deve ser a régua para medir o lugar que cada Estado ocupa no sistema internacional? Na tradição marxista a discussão esteve concentrada na necessidade de responder às mudanças que ocorreram nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e que permitiram compreendê-la. Em 1902 foi publicado o livro do inglês Hobson, O imperialismo, muito bem recebido por Kautsky, o principal líder teórico do SPD alemão, mais influente partido da Segunda Internacional e, em 1910, o de Hilferding, O capital financeiro, que obteve grande repercussão. Rosa Luxemburgo e Bukhárin foram, também, pioneiros na elaboração, mas foi o livro de Lenin O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo que alcançou maior repercussão. Lenin destacou cinco novos fatores no metabolismo do capital que explicavam uma mudança de fase ou período na natureza do capitalismo: (a) concentração de capital e formação de monopólios; (b) fusão do capital industrial e bancário originando o capital financeiro; (c) papel da exportação de capitais na conquista e preservação de posições de domínio; (d) formação de corporações multinacionais que dividem entre si o mercado mundial; (e) partilha do mundo entre os Estados imperialistas. Estes cinco critérios, essencialmente econômicos, permanecem válidos. Seria tolice desconhecer sua vigência. Mas não bastam. Hoje uma parcela do velhos Estados imperialistas da etapa histórica anterior, talvez uma maioria, perderam seu estatuto. São ainda países centrais, e ocupam uma posição privilegiada no sistema internacional, mas como Estados associados em variados graus de dependência dos Estados imperialistas.
- Os critérios apresentados por Lenin são insuficientes para compreendermos o que é um Estado imperialista no século XXI por três razões: (a) a acumulação de capital repousa, mais de quarenta anos depois da explosiva financeirização e mundialização, na expansão do crédito e capitais fictícios em uma escala assombrosa que só é possível de compreender pela integração, tanto das cadeias produtivas, como de circulação de capitais no espaço internacional, e poucos Estados têm este privilégio ; (b) a ordem mundial se transformou e, durante setenta e cinco anos, foi possível impedir uma nova guerra mundial em função do equilíbrio do terror das armas nucleares, portanto, as potências imperialistas se afirmam pela hegemonia econômico-financeira, mas, sobretudo, pela supremacia militar; (c) um Estado só pode ocupar uma posição imperialista se tem garantia de plena soberania alimentar, energética, educacional e científica, econômica, política, militar e espacial.