“Esquerda-Fluminense” ou sobre a judicialização da política

por Francisco Fernandes Ladeira

No Campeonato Brasileiro de 1996, o Fluminense, um dos clubes mais tradicionais do país, ficou na penúltima colocação, sendo, de acordo com o regulamento, rebaixado para a Segunda Divisão (hoje mais conhecida pelo eufemismo Série B). No entanto, no ano seguinte, o tricolor carioca conseguiu, no chamado “tapetão”, continuar na elite do futebol tupiniquim. Prática popularmente conhecida como “virada de mesa”.

Nessa mesma época, em um dos primeiros dias do ano letivo de 1997, um amigo de escola, coincidentemente torcedor do Fluminense, começou a aula no primeiro ano do ensino médio e, após o intervalo, passou a frequentar a turma do segundo ano. Categoricamente, ele afirmou: “virada de mesa, cara!”. Não deu certo para ambos. No final daquele ano, tanto o Fluminense foi rebaixado, como meu amigo foi reprovado. Mas ficou a “fama” para o tricolor das Laranjeiras, que, em uma das trocas de temporadas do futebol brasileiro, ainda conseguiu a proeza de subir da Terceira para a Primeira Divisão. Não por acaso, nas redes sociais, quando há uma postagem sobre uma causa jurídica difícil de ser ganha, alguém logo comenta: “chama o advogado do Fluminense”.

Em política, a prática de judicialização tem um nome: lawfare. Esse “tapetão” foi utilizado, por exemplo, no golpe de 2016 contra Dilma Rousseff. Impossibilitada de vencer a esquerda “dentro de campo” – ou, melhor dizendo, nas urnas – a direita promoveu uma “virada de mesa” para voltar ao poder. Mas, por uma dessas ironias ideológicas, hoje é a esquerda que mais tem vibrado e recorrido ao “tapetão”. O exemplo mais emblemático é a terceirização da militância da esquerda para o judiciário, sobretudo na figura do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Assim, ao invés de confrontar o bolsonarismo no campo das ideias ou nas ruas, boa parte dos setores progressistas prefere vibrar com as ações do Xandão, da Política Federal (PF) e de outros órgãos da repressão estatal. Até o léxico utilizado é o mesmo outrora presente nos discursos da direita e extrema direita. A cada operação da PF ou medida do STF contra adversários políticos, logo vem alguém da esquerda e diz: “grande dia”.

Atualmente, tem feito muita falta uma leitura básica de Althusser. Como nos ensinou o filósofo marxista francês, aparelhos ideológicos e repressivos do Estado – como os anteriormente citados PF e STF – sempre estarão a serviço da dominação burguesa. Se o alvo privilegiado da vez é o bolsonarismo, há um propósito nisso. Para ser bem-sucedida politicamente, a direita tradicional, “ala oficial da Faria Lima”, precisa se livrar do monstro que ajudou a criar. E tal tarefa fica muito fácil se puder contar com o apoio empolgado da esquerda.

Além da militância, a “Esquerda-Fluminense” ainda busca criar mais leis que fortaleçam os aparelhos repressivos de Estado. Na última sexta-feira (1/8), o deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou um projeto de lei para criar o crime de alta traição à pátria. Segundo o parlamentar, a medida foi pensada visando Eduardo Bolsonaro, que atualmente tem articulado junto ao governo estadunidense algumas ações contra o Brasil. Trata-se de mais um potencial boomerang político. Hoje, mira no bolsonarismo; amanhã pode se voltar contra a esquerda, que, urgentemente, precisa aprender com o passado (não tão remoto assim!).

Se, para o tricolor carioca, o “tapetão” foi benéfico, para a esquerda, em contrapartida, o apoio a essa judicialização é praticamente um suicídio político. Em 2010, durante o primeiro governo Lula, foi sancionada a Lei Complementar nº 135, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa. Seu propósito, basicamente, é impedir a eleição de candidatos condenados por órgão colegiados a cargos políticos. Em outros termos, juízes, e não o povo, decidem quem será eleito para os cargos públicos. Menos de uma década depois, no contexto de “virada de mesa” da direita, Lula foi impedido de disputar a eleição presidencial de 2018, ironicamente por causa da Lei da Ficha Limpa. Bolsonaro foi eleito e o resto da história tragicamente sabemos como foi. Enfim, “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado”, de Louis Althusser, publicado pela primeira vez em 1970, nunca foi tão necessário.

Francisco Fernandes Ladeira é doutor em Geografia pela Unicamp e professor da UFSJ. Autor de treze livros, entre eles, “A ideologia dos noticiários internacionais – volume 2” (Emó Editora)

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Last Update: 06/08/2025