2025: o ano que começou de novo – por Rômulo Paes de Sousa

Neste artigo para o blog do CEE-Fiocruz, o coordenador do Centro, Rômulo Paes de Sousa, analisa a trajetória ascendente que vem descrevendo o governo Lula, de forma “de forma tempestiva, vigorosa e organizada”, diante de investidas como a do Congresso Nacional, no caso da alteração do IOF, e da intervenção do governo Trump no país, impondo a tarifa de 50% nas importações de produtos brasileiros. “O governo conseguiu explorar o contexto, demonstrando o regressivo sistema tributário como o grande produtor de iniquidades no país”, escreve. “A crise do tarifaço deu ao presidente Lula mais do que um palanque para mobilizar sua base social. Deu a ele a autoridade de liderar o país na defesa de um ataque sem precedentes à soberania nacional”, observa ainda.
​Acesse abaixo o artigo.

por Rômulo Paes de Sousa

Em meados de junho de 2025, o governo do presidente Lula se encontrava em estado crítico. Duas teses antagônicas adquiriam grande penetração entre as bases governistas: uma mais adaptativa e pragmática, outra que proclamava o enfrentamento imediato.

A abordagem mais pragmática alertava que as fragilidades parlamentar e partidária do seu governo limitavam a possibilidade de promover reformas substanciais que reduzissem a desigualdade e ampliassem o bem-estar da população. A liderança de esquerda vitoriosa nas eleições presidenciais de 2022 só teria sido possível graças a uma aliança de centro-direita. Apesar de enfrentar uma complexa relação nesse condomínio político tão diverso, o governo já teria acumulado importantes resultados na economia. Dessa forma, o mandato atual seria de recuperação e acúmulo político com vistas a uma condição mais favorável para o período 2027-2030. 

A tese em favor de um enfrentamento imediato afirmava que a esquerda teria perdido várias batalhas na conquista do eleitorado pela adesão à linguagem e à agenda de seus adversários. Esse comportamento de traição reiterada reduziria sua competitividade, deixando o presidente Lula como a única candidatura progressista competitiva para 2026. A saída seria tensionar a institucionalidade, sobretudo no confronto com o Congresso, promovendo ações de sentido transformador. Caberia à esquerda retomar a iniciativa revolucionária que hoje estaria nas mãos da extrema direita.

Para os eleitores pobres e não tão pobres pesa mais o argumento de quem luta em favor dos seus e, por consequência, contra os privilégios dos poderosos do que o clamor por uma abstrata e oportunista responsabilidade institucional

Em 25 de junho, em movimento combinado, os presidentes das duas casas expuseram o governo a uma derrota contundente. Diante de um cerco esmagador, não restou ao governo outra saída senão ir às ruas – mais precisamente, por meio das redes sociais – e acionar o Judiciário para se defender do Legislativo, dos grandes jornais e da elite financeira do país. Dessa vez, o presidente Lula, seu governo e seu partido agiram de forma tempestiva, vigorosa e organizada, com uma narrativa bem construída, que inverteu a tendência na opinião pública em favor do governo e de sua causa. O contexto exigia uma rápida mudança de rota, fazendo com que o diagnóstico sistemático dos defensores de uma abordagem pragmática e adaptativa se encontrasse com o clamor pela ação imediata.

O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, reagiu, alegando que Lula havia resolvido governar contra todos. Faltou-lhe compreender, entretanto, que o eleitor, há tempos, perdeu a fé na institucionalidade que o coloca fora do orçamento e do grande jogo político. É justamente a capitalização desse sentimento que deu à extrema direita em todo o mundo a desenvoltura necessária para colecionar vitórias eleitorais e colocar as relações entre os poderes de ponta a cabeça. Para os eleitores pobres e não tão pobres pesa mais o argumento de quem luta em favor dos seus e, por consequência, contra os privilégios dos poderosos do que o clamor por uma abstrata e oportunista responsabilidade institucional.

Um aspecto importante que fragilizou os argumentos dos líderes do Congresso foi a ausência de uma justificativa aceitável para o cidadão comum sobre o início do conflito. Cobiça por cargos na Esplanada ou eventual desentendimento com algum membro do alto escalão do governo não justificariam uma tensão entre poderes dessa ordem.

A refrega pela alteração no IOF trouxe lições importantes: 1) seria possível ser vitorioso nas redes sociais e cativar o eleitorado, mesmo diante de uma coalizão de grande envergadura; 2) o eleitorado percebe o jogo político e entende quando os seus interesses estão sendo desconsiderados; 3) nem o governo estava morto, nem a direita alargada possuía unidade sobre a disputa eleitoral do ano que vem.

O governo conseguiu explorar o contexto, demonstrando o regressivo sistema tributário como o grande produtor de iniquidades no país. O ministro Fernando Haddad atuou como o principal atacante do time governista: didático, contundente, onipresente e cuidadoso. Ele encontrou a dicção e a gramática que o governo buscava, até então, com limitado sucesso.

A refrega pela alteração no IOF trouxe lições importantes: 1) seria possível ser vitorioso nas redes sociais e cativar o eleitorado, mesmo diante de uma coalizão de grande envergadura; 2) o eleitorado percebe o jogo político e entende quando os seus interesses estão sendo desconsiderados; 3) nem o governo estava morto, nem a direita alargada possuía unidade sobre a disputa eleitoral do ano que vem.

Em 9 de julho, o presidente norte-americano Donald Trump anunciou a imposição de tarifas acumuladas de importação no patamar de 50% para produtos brasileiros, que passariam a vigorar em 1º de agosto de 2025. Posteriormente, houve tanto relaxamento no nível tributário para quase 700 itens, como o adiamento da vigência da nova tarifa para 7 de agosto de 2025. Os itens isentos do tarifaço representam 43,4% do total das exportações brasileiras, segundo os cálculos da Câmara Americana de Comércio para o Brasil. Embora 90 países tenham sido objeto de notificação quanto ao aumento de tarifas (de 10 a 41%), a apresentada para o Brasil possui contornos próprios. Além de ser a mais elevada delas, a justificativa apresentada difere das demais por conter motivação política, especialmente pelas questões envolvidas no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e em decisões do judiciário relativas às grandes plataformas de mídias sociais.

A referência explícita ao julgamento de Bolsonaro, que é um tema político exclusivo de um país aliado, contraria a narrativa de Trump para as alterações tarifárias em outros países, que seriam: equilibrar o saldo nas trocas comerciais e no acesso aos mercados externos, promover investimentos americanos, incentivar a reindustrialização dos EUA e obter vantagens nos acordos comerciais.

A crise do tarifaço deu ao presidente Lula mais do que um palanque para mobilizar sua base social. Deu a ele a autoridade de liderar o país na defesa de um ataque sem precedentes à soberania nacional. O conflito deixou explícito que os iminentes concorrentes de Lula se encontram na contramão dos interesses do país. A família Bolsonaro e os governadores bolsonaristas estão, no presente, tanto atuando contra os interesses econômicos e políticos do Brasil, quanto tentando ludibriar os eleitores sobre os reais interesses de Trump e sobre o que o Brasil pode fazer para contê-los. O conflito elevou também o status político do vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alkimin, dentro e fora do governo.

Uma parte expressiva do grande empresariado já fez as contas e não quer o prejuízo que o tarifaço lhes imporá. Querem que os governadores direitistas parem de jogar para o eleitorado bolsonarista e procurem influenciar o presidente Lula na condução da crise. Quem continuar com a narrativa enganosa quanto às razões do tarifaço e da legitimidade do presidente do Brasil, não terá jogo com o Governo Federal. A resolução da crise depende de quanto o Brasil pode e está disposto a ceder para não perder o acesso ao mercado norte-americano. É justamente o presidente Lula quem definirá essa medida.

Até a crise do IOF, seguida pela crise do tarifaço, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, caminhava para assumir o comando da frente anti-Lula, na qual arregimentaria o Centrão, a Faria Lima, o agronegócio, a grande imprensa, os religiosos ultraconservadores e os bolsonaristas. O governador Tarcísio meteu-se em uma enrascada ao tentar conciliar o impossível equilíbrio entre os interesses de sua base empresarial com a pressão do presidente norte-americano sobre o país, usando o enredo da alegada perseguição ao ex-presidente Bolsonaro. Os interessados na produção de um novo líder direitista já buscam alternativas. O governador Ratinho Jr. está sendo testado nos (e pelos) grandes jornais.

Em que pese algumas diferenças nessa trama, os governadores Tarcísio, Ratinho Jr., Caiado e Zema, que ambicionam um lugar na chapa majoritária para as eleições presidenciais do ano que vem, evitaram as manifestações pró-Bolsonaro, em 3 de agosto de 2025. Nenhum quis arriscar se desgastar com o empresariado e parte significativa do eleitorado dos seus estados. Mesmo assim, as manifestações agregaram um considerável número de participantes e foram, abertamente, pró-Trump. O bolsonarismo dobrou a aposta em usar a pressão tarifária norte-americana na vã expectativa de proteger o ex-presidente da cadeia. A família Bolsonaro foi pouco relevante nos atos pelo Brasil, mas o bolsonarismo mostrou vigor na capacidade de colocar sua militância na rua.

O ano 2025 entrou no modo reiniciar. O governo do presidente Lula ganhou muita força nas últimas seis semanas. Contudo, a extrema-direita, ainda encarnada no bolsonarismo, indica potência suficiente para sobrevier ao iminente encarceramento de seu líder maior. Os governadores direitistas continuam caminhando no fio da navalha. Segue o jogo.

Rômulo Paes de Sousa – Coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)

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Last Update: 06/08/2025