Urbanizar uma favela/comunidade urbana ou favorecer o mercado imobiliário? A resposta a essa questão é sempre uma decisão política. E, como tal, um exercício de poder que implica escolher entre: a) fazer um urbanismo redistributivo – de orientação social-democrata –, que qualifique assentamentos precários dotando-os com as infraestruturas técnicas e sociais necessárias para que seus habitantes sejam, de fato, sujeitos de direitos; ou b) fazer um urbanismo corporativo, que negligencia as demandas de direitos sociais e prioriza a destinação do fundo público – seja na forma de investimentos financeiros, seja na forma da destinação do patrimônio imobiliário do Estado – para a realização de empreendimentos imobiliários.

Em Salvador, o governo da Bahia deixou explícita a intenção de aderir à alternativa do urbanismo corporativo ao optar por vender os imóveis do Terminal Rodoviário de Salvador e da antiga sede do Departamento Estadual de Trânsito (Detran), ignorando a sua importância para a urbanização de Samarandaia, favela/comunidade urbana habitada por 9.879 pessoas, localizada no limite dos ditos imóveis e demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) pelo Plano Diretor de Salvador.

Com a aprovação das leis estaduais nº 14.383/2021e nº 14.385/2021, o governo da Bahia – então comandado por Rui Costa – obteve da Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA) a autorização para vender os imóveis da Rodoviária e do Detran, visando aplicar os recursos obtidos com o leilão dos imóveis na “capitalização do Fundo Financeiro da Previdência Social dos Servidores Públicos do Estado da Bahia – FUNPREV e em outros investimentos”.

Essa ação do governo do estado em nada destoa das ações que a prefeitura de Salvador vem adotando em relação ao seu próprio patrimônio imobiliário. Desde 2014, a prefeitura também promulgou quatro leis que autorizaram desafetações e leilões de 154 áreas públicas municipais, totalizando aproximadamente 936.746,73m². Isso evidencia uma convergência programática entre o governo do PT na Bahia e o governo do União Brasil na prefeitura, que juntos engendram um processo sistemático de transferência de patrimônio público para o setor privado. Trata-se de uma política urbana que, ao invés de priorizar o uso social da terra e a ampliação do acesso à cidade, reforça a lógica de mercantilização do território e contribui para aprofundar as desigualdades socioespaciais que já marcam profundamente o tecido urbano de Salvador.

No caso do governo do estado, sem desconsiderar o mérito do objetivo de capitalizar o FUNPREV, entendemos que ele não justifica a venda dos imóveis quando se compara à importância de usá-los na urbanização da ZEIS Saramandaia. Por isso, trazemos aos leitores alguns argumentos técnicos que consideram a localização e a dimensão dos imóveis, bem como as precariedades do padrão de uso e ocupação do solo de Saramandaia que poderiam ser corrigidas se os imóveis fossem utilizados como recurso de um plano de regularização urbanística e fundiária da ZEIS.

Quanto à localização, é importante destacar que os imóveis estão no “centro financeiro” estabelecido entre as avenidas ACM e Tancredo Neves, zona de Salvador que, desde a década de 1970, vem recebendo vultosos investimentos públicos em infraestruturas técnicas – como sistema viário, sistemas de distribuição de energia, abastecimento de água, coleta de esgoto e drenagem pluvial –, e em infraestrutura social – como as instalações de três diferentes modais do serviço de transporte coletivo (duas estações de metrô, um terminal de ônibus e uma estação de BRT). Esses investimentos fazem da localização dos imóveis da Rodoviária e do Detran uma “mina de ouro” para agentes do mercado imobiliário que, como prováveis adquirentes dos imóveis nos leilões do governo do estado, terão como pretensão utilizá-los para instalar empreendimentos comerciais (como um novo shopping center ou condomínios de salas comerciais) ou condomínios residenciais voltados para a população de alta renda.

Como podemos ver no Mapa 1, em termos de dimensão, os imóveis da Rodoviária e do Detran têm áreas de terreno de, respectivamente, 123.841,40m² e 62.938,54m². Somados, perfazem uma área bruta de 186.779,94m² (ou 18,67 hectares – ha). Podemos dar um melhor entendimento do significado espacial desse número estabelecendo as seguintes correlações: essa área é equivalente a 26 campos de futebol com as dimensões do campo da Arena Fonte Nova (105 x 68m); é ainda equivalente a 2,2 vezes a área bruta comercial do Shopping da Bahia (84.606 m²); e, também, é de 1,2 a 1,4 vezes maior que a área de bairros inteiros de Salvador, como Colinas de Periperi (13 ha) e Vale das Pedrinhas (15,59 ha).

A partir do Mapa 2 constatamos também que na ZEIS Saramandaia uma parcela de 33.574,73m² (11,91%) de sua área total (281.859,03m²) possui declividade ≥ 30%. Segundo a Lei Federal nº 6.766/1979, o parcelamento e a ocupação dessa área deveriam ser vetados, dado que tal declividade causa uma maior suscetibilidade a deslizamentos de terra. Entretanto, em Saramandaia, observa-se que 2.566 edificações estão total ou parcialmente implantadas sobre a área com declividade ≥ 30%. Dessas edificações, 519 tem mais de 10% de sua área de projeção horizontal incidindo sobre a área com declividade ≥ 30%, o que as torna ainda mais suscetíveis a eventuais deslizamentos de terra.

Podemos então questionar: como a localização e a dimensão dos imóveis se relaciona com as edificações em situação de risco e as demais precariedades do ambiente construído da ZEIS Saramandaia?

Ora, ao considerar que as 519 edificações ocupam uma área de ≈ 25.830,06m², constatamos que essa área corresponde a apenas 13,8% da área bruta dos imóveis da Rodoviária e do Detran. Esse dado evidencia que os imóveis poderiam comportar com folga o reassentamento de todas as famílias que hoje ocupam as edificações em situação de maior risco em Saramandaia, atendendo às suas necessidades de moradia com Habitações de Interesse Social (HIS) construídas no entorno imediato do território que elas ocupam atualmente. Essa seria uma importante política pública para evitar que “tragédias” como os deslizamentos decorrentes das chuvas ocorridas em dezembro de 2024 se repitam e vitimem mais famílias em Saramandaia.

Devemos também ressaltar que os outros 86,2% (ou 16,1 ha) da área bruta dos imóveis poderiam ser utilizados para produzir um sistema viário que conectasse adequadamente Saramandaia ao seu entorno, facilitando o acesso de seus moradores aos modais do serviço de transporte público já instalados. E além de atender as obras da regularização urbanística e fundiária da ZEIS, a área poderia comportar outras infraestruturas que funcionassem como um ativo público para melhorar a qualidade de vida em Salvador – como um parque público, um hub de serviços públicos ou infraestruturas sociais (de saúde, educação, assistência social, lazer) que atendessem a demanda reprimida dos moradores de Saramandaia e de outros bairros do entorno (como Pernambués).

Todos os potenciais usos dos imóveis da Rodoviária e do Detran acima esboçados conformariam importantes medidas de urbanismo redistributivo que o governo da Bahia poderia efetivar, contribuindo para o combate das desigualdades sócio-espaciais que configuram Salvador.

Todavia, ao considerar que, até o momento, o governo não parece disposto a rever a pretensão de descartar os imóveis em um leilão arrecadatório que só vai premiar os interesses do mercado imobiliário, entendemos que a publicação das alternativas esboçadas é uma contribuição para registrar que fazer outra história era possível.

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Last Update: 04/08/2025