Parceria com o Ferroviária vai ampliar a visibilidade e profissionalização do futebol feminino nos territórios. Foto: Leonardo Henrique

Por Pamela Oliveira
Da Página do MST

A partir de setembro, o Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) e o Ferroviária Futebol S/A (FSA), de Araraquara (SP), dão início a uma frutífera parceria esportiva e formativa. O Clube se soma ao Movimento em sua área de esporte, a partir de três frentes iniciais voltadas à valorização e difusão do futebol feminino. A parceria vai contribuir com capacitação, realizar seletivas em pólos territoriais do MST e avançar na contratação de atletas promissoras. 

A iniciativa é parte das ações da recém consolidada Articulação Nacional de Esportes do Movimento, em conjunto com o Coletivo de Esportes. Além da promoção do lazer, o objetivo da Articulação é de que mais atletas oriundas de assentamentos e acampamentos de Reforma Agrária possam construir trajetórias esportivas profissionais, sem romper vínculos com suas comunidades e com a luta coletiva. Para que, dessa forma mais meninas e mulheres possam experienciar o lazer e a diversão junto à modalidade.

“A nova parceria entre o setor esportivo do MST e o Clube da Ferroviária de Araraquara representa um encontro de trajetórias comprometidas com transformação social. Historicamente, a Ferroviária sempre valorizou o futebol feminino, apostando na modalidade com seriedade e parcerias públicas, muito antes da recente ascensão do profissionalismo no Brasil.” comenta Aira Bonfim, historiadora do esporte, mestre pela FGV em História, Política e Bens Culturais, cuja pesquisa se dedica às práticas esportivas contra-hegemônicas.

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3ª Copa da Estadual da Reforma Agrária, no Ceará. Foto: Aline Oliveira

Valorização do esporte e do lazer

Para Joba Alves, responsável nacional pela articulação de esportes e lazer do MST, a expectativa da parceria é grande e coerente com as práticas do Movimento. “Estive no Ferroviária e pude ver que lá existe um trabalho muito bom, muito importante, de formação e conscientização das meninas. Eles tentam inserir o time como referência não só nas competições e campeonatos, mas na consciência de todas as pessoas que estão envolvidas no projeto”, avalia. 

Para Viviane Onuczak, da coordenação do Instituto Educacional Josué de Castro (IEJC/RS) e membra da Articulação, a oportunidade abre portas para a organização validar ainda mais a importância do esporte na vida do povo camponês, abrindo outras portas para as jovens.

“Poder oportunizar este acesso, que é muito disputado dentro mundo esportivo… [ou seja] você conseguir se tornar uma atleta profissional, é muito difícil. E essa oportunidade de parceira poderá validar algumas concretizações de sonhos. Além disso, é uma oportunidade conseguir, através do esporte e do futebol, reunir a juventude pra debater o esporte como espaço saudável para o desenvolvimento e cuidado com a vida”, observa a coordenadora do IEJC.

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Pioneirismo no futebol feminino

O clube é pioneiro na modalidade feminina do futebol. O Ferroviária teve sua equipe feminina, as Guerreiras Grenás – apelido carinhoso que receberam da imprensa -, criada em 2001. A fundação se deu a partir de uma iniciativa da prefeitura municipal de Araraquara, que então tinha como prefeito, Edinho do Partido dos Trabalhadores (PT) – também à frente administração da cidade na gestão atual.

“Vale ressaltar que o protagonismo da Ferrinha vai além do tratamento digno à modalidade: ele se estende ao futebol de mulheres no Brasil, ao abrir caminhos para tantas profissionais em cargos técnicos e de liderança, não apenas no futebol feminino, mas também no masculino. Um exemplo ainda raro entre os clubes profissionais do país”, destaca Aira Bonfim.

Devido à sua dedicada atuação na modalidade feminina, o Clube anunciou o 1º Centro de Treinamento de futebol feminino no país, com alojamento, estrutura médica e espaços de treinamento para abrigar até 240 crianças e jovens entre 9 e 20 anos, desde a escolinha até o nível de base. O projeto, viabilizado por meio de um convênio entre a Fundação de Amparo ao Esporte de Araraquara (Fundesport), a Petrobrás e o Governo Lula, foi anunciado no início deste ano, e já está em andamento.

Equipe Sub-15 das Guerreirinhas Grenás em jogo contra o Santo André (SP). Foto: Victor Bessa/Divulgação

A parceria com o MST visa que mais crianças e jovens dos assentamentos e acampamentos sejam beneficiadas por seus talentos com uma oportunidade de profissionalização e atuação junto às Guerreiras. “Eu fiquei muito feliz, porque eu mesma nasci em acampamento, morei em assentamento praticamente a vida toda, e eu tinha esse sonho de ser jogadora de futebol. E agora, poder ajudar a consolidar essa realização, de ter uma abertura ao esporte profissional, é muito bom”, relata Viviane Onuczak.

Mulheres Sem Terra no futebol

A parceria também surge em um momento de valorização do futebol feminino: outra trincheira de lutas para as meninas e mulheres do MST, no enfrentamento ao machismo, que se revela também nos clubes de futebol e nas várzeas. 

“Debater o futebol feminino no país é complexo. A gente vê que os clubes só começaram a ter equipes femininas após a federação colocar obrigatoriedade. Então, você vê que é um espaço de muita luta, de muita disputa, para que a gente possa ter uma igualdade entre o futebol feminino e masculino. A Copa América, por exemplo, pouco se fala que o Brasil esteve na final no futebol feminino no último sábado (2)”, critica a coordenadora.

Parceria visa dar mais oportunidades às meninas e mulheres Sem Terra. Foto: Comunicação MST/CE

“Muitas vezes, em nosso território, tem o campo [de futebol] e ele acaba ainda sendo um espaço muito masculino, voltado para mais adultos e terceira idade. E a juventude tem menos oportunidade, em especial, as meninas. E é necessário disputar esse espaço que é o campo de futebol”, constata Onuczak.

O Ferroviária, por sua vez, destaque no futebol feminino, aplica o mesmo tratamento às mulheres do que é fornecido à categoria masculina, sem distinções – algo raro na modalidade. As Guerreiras Grenás possuem, por exemplo, o mesmo tratamento e quantidade de coletivas de imprensa que o time masculino.

Com elas, o Clube conquistou diversos títulos importantes, como o bicampeonato Brasileiro em 2019. E também ajudou as “seleções brasileiras em competições internacionais como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, cedendo inúmeras atletas formadas em Araraquara”, segundo informam em seu site. 

 Equipe Sub-20 das Guerreirinhas Grenás em jogo vitorioso contra o América (MG). Foto: Rafael Zocco/Ferroviária

O objetivo com o MST é que mais experiências sejam oportunizadas para as meninas e jovens mulheres Sem Terra que, além de talento com a bola, possuem o sonho de se tornarem jogadoras de futebol profissionais, assim como ocorreu como Viviane no passado. 

Viviane destaca que a precariedade de atenção às meninas jogadoras, leva a ainda mais dificuldades, no caso do futebol feminino, para avançarem da base para os times principais – que já é uma dificuldade na modalidade. “Existem muitas, muitas meninas atletas de base, mas não têm esse suporte e desenvolvimento, o acompanhamento de como se tornar atleta profissional. E eu vejo que vai ser uma oportunidade de organizar essas mulheres e meninas. Além do profissional, ter também um espaço de lazer e diversão nos territórios”, projeta.

Já para Alves, o Movimento espera fazer do Ferroviária uma “escola de aprendizagem”, sobretudo quanto ao futebol feminino, e avançar no esporte nos territórios. “Nós chegamos praticamente onde ninguém chega, com mais de 200 mil crianças em escolas formais de assentamentos do MST, e a gente quer fazer com que a juventude possa ter acesso à essas oportunidades”, esperamos nessa primeira etapa envolver pelo menos mil jovens e crianças, avalia.

Capacitação da militância

Outro objetivo da parceria é viabilizar que militantes do MST possam ser capacitados em diferentes áreas do futebol feminino. A Ferroviária viabilizará orientação, cursos e vivências no CET, com a finalidade de formar multiplicadores para áreas de arbitragem, metodologias de seleção e observação de potenciais atletas, e formação de profissionais que atuarão em escolinhas de aprendizagem nos territórios da Reforma Agrária. 

Um primeiro passo será a participação de militantes do MST em uma atividade de seleção de jogadoras de base, entre 13 e 20 anos, que ocorrerá em Setembro, na sede do Clube. Na ocasião, além de expoentes jogadoras Sem Terra poderem participar da seletiva, as diferentes atividades devem ser gravadas para serem multiplicadas entre outros militantes do MST que estão à frente dos Coletivos de Esporte em seus estados.

Carlos Thiengo, da Ginga Futebol, que presta serviços de metodologias de ensino e treinamento de futebol às Guerreiras Grenás, analisa ser importante essa primeira interação presencial em Araraquara. “Nós acreditamos que é importante a experiência, estarem conosco no seio de como é feito a seletiva das jogadoras. E diante da imensidão de acesso do MST a tantas crianças, queremos oferecer algo que possa ser útil para os multiplicadores, com material personalizado para o Movimento, para que fique em paralelo o processo de observação de jogadoras e o processo de treinamento dessas meninas”, explica.

Esporte sem romper com a terra

Para Onuczak, o futebol está na cultura do povo camponês, e faz parte do dia-a-dia dos Sem Terra nos territórios, sendo frequente haver partidas de várzea nos finais de semana. “O futebol sempre está presente na vida da população do campo e urbana. É uma coisa que mobiliza e organiza as pessoas de uma forma voluntária para se encontrar e, de alguma maneira, poder oportunizar esses momentos de confraternização”, observa.

Estados como Rio Grande do Sul, Pará, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Bahia, Paraná e Ceará são alguns dos já conhecidos por suas Copas e Campeonatos estaduais da Reforma Agrária, com presença de atletas femininas e times na modalidade esportiva.

1ª Copa da Reforma Agrária do Paraná. Foto: Thiarles França

No Rio Grande do Sul, por exemplo, o XII Campeonato da Reforma Agrária será realizado entre os meses de agosto e setembro. A partir das 12 mil famílias residentes de assentamentos no estado, cada uma das dez regiões realiza uma etapa de campeonatos, para então disputarem o campeonato estadual, que está em sua décima segunda edição. No ano de 2024, participaram 27 times no total, e 12 eram equipes de futebol femininas. 

É buscando acessar esses locais de concentração de atuação na modalidade, que o Ferroviária S/A propôs a realização de peneiras também nos territórios do MST, que serão definidas na próxima etapa da parceria. “Nós queremos fazer um trabalho pelo Brasil. Sair de Araraquara e poder levar nosso trabalho em um lugar que o MST defina que há projetos, mais meninas, e condições de fazer um trabalho legal de seletivas”, aponta Nuty Silveira, ex-jogadora do time e atual Diretora Executiva do Futebol Feminino do Ferroviária.

A proposta inicial do MST é de que sejam mapeados grandes polos pelo Brasil, identificando os locais com maior presença de jogadoras de futebol entre 9 e 20 anos, para que o Ferroviária realize o processo seletivo das atletas nos territórios da Reforma Agrária. Após o mapeamento, a Frente também deverá propor formas de viabilizar que outras atletas, de territórios mais distantes, onde não serão realizadas as peneiras, possam participar das seletivas nos pólos estratégicos escolhidos.

Time feminino de escola de assentamento vence campeonato de futebol de Santa Catarina envolvendo escolas públicas e privadas. Foto: MST/SC

Outro aspecto importante que as seletivas territoriais podem proporicionar é a possibilidade de projetar o Movimento para além das desinformações e notícias falsas que circulam sobre o povo Sem Terra, situando a organização junto ao público torcedor como o Movimento, com integridade e compromisso com a democracia e a vida. 

“Ao sairem do ambiente de clube e conhecerem nossos territórios, assentamentos e acampamentos, será mais uma oportunidade de abrir outra porta para o Movimento e demonstrar para a sociedade que não somos “os invasores”. De que somos um Movimento que pensa no desenvolvimento humano em sua plenitude: na produção de alimentos saudáveis, no desenvolvimento do corpo, no cuidado com a juventude, com os Sem Terrinha”, aponta Viviane. E conclui “é uma oportunidade de dialogar com a sociedade a defesa da democracia e dos territórios”.

Escolinhas e revelações nos assentamentos

As metodologias ensinadas pelo Ferroviária serão importantes também para as escolas de aprendizagem de crianças e jovens, já existentes nos territórios onde o MST atua, por todo o país. Um exemplo é a escolinha de futebol de Viamão, no RS, que realiza treinos com meninas e meninos todos os sábados, há mais de um ano. 

“Em Viamão, nós temos uma escolinha em um assentamento, que está atendendo vários jovens, meninos e meninas, de faixa etária até 15 anos. Uma iniciativa da Andressa, que é estudante de Educação Física, e iniciou o projeto”, relata Viviane.

Yngrid Piauí foi Campeã brasileiro sub-17 pelo Internacional. Foto: Victor Lannes/Divulgação

Ao oferecer oportunidade de treino e prática esportiva para as crianças e jovens Sem Terra, diversos atletas foram sendo revelados em territórios do Movimento. Uma delas é a jovem Yngrid Piauí, oriunda do assentamento Marrecas, no Piauí, que foi convocada para a Seleção Brasileira Sub-17 em 2024, e joga na posição de atacante nas categorias de base do Sport Clube Internacional. A atleta começou sua jornada no futebol feminino aos 12 anos, ainda no MST. 

A goleira profissional Maike Weber também passou boa parte de sua infância em assentamento de Reforma Agrária, na região da Conquista na Fronteira, oeste de Santa Catarina e divisa com a Argentina. Ela e é um exemplo da relevância do Ferroviária/SA para a carreira no futebol feminino.

Em 2014, ela atuou pelo clube e, em desisão de pênaltis, foi campeã da Copa do Brasil. A partir de 2017, foi convocada como goleira da seleção brasileira por vários anos, disputou duas vezes os Jogos Olímpicos, ganhando uma medalha de bronze e outra de prata. Após passar por times como Esporte Clube Bahia, Weber atua profissionalmente pelo Atlético Mineiro.

Maike Weber. Foto: Divulgação

Outro exemplo é Danielzinho, descoberto na Escolinha Vitória, do Pernambuco, formada inteiramente por filhos e filhas de assentados, e que deu início à sua atual carreira nas categorias de base do time de Cianorte, no Paraná.

Agora, com a parceira do Ferroviária, o objetivo é revelar ainda mais meninas assentadas e acampadas, para que recebam todo apoio e estrutura para desenvolverem sua paixão e alcançarem seu sonho, sem precisarem abandonar a luta coletiva.

*Editado por Solange Engelmann

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Last Update: 04/08/2025