Esses processos eleitorais revelam um continente americano em disputa: entre modelos que apostam na austeridade, no autoritarismo e na desmobilização social, e propostas que buscam ampliar direitos, renovar as formas de representação e construir uma democracia mais participativa e inclusiva

Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo

O segundo semestre de 2025 marca um momento decisivo para a democracia em quatro países latino-americanos, Argentina, Bolívia, Chile e Honduras, onde as eleições se tornam mais do que simples disputas partidárias: refletem a tensão entre a sobrevivência de velhos modelos de poder e a emergência de novas lideranças e agendas sociais. Em comum, esses países enfrentam o desgaste das instituições, a fragmentação política, a crise econômica e a desilusão de sociedades cada vez mais críticas, exigentes e politicamente mobilizadas. As urnas, neste contexto, não serão apenas um instrumento de escolha, mas o campo simbólico e concreto onde se confrontam diferentes projetos de futuro.

Na Argentina, a eleição legislativa de 26 de outubro será um termômetro da gestão de Javier Milei, presidente eleito em 2023 com uma plataforma ultraliberal. Desde sua posse, Milei promoveu um verdadeiro desmonte do Estado, com cortes drásticos em políticas públicas, privatizações e ataques a instituições democráticas. Em meio a uma inflação persistente, desemprego e mobilizações populares, o país vive uma tensão permanente entre a promessa de ruptura com o “sistema” e os impactos sociais de uma agenda de austeridade. A oposição, dividida entre peronistas, kirchneristas e setores moderados, busca reagrupar forças para conter o avanço de um modelo que ameaça os pilares do pacto democrático argentino. O Congresso, neste cenário, desempenha um papel central na definição dos limites do poder presidencial.

Na Bolívia, a disputa nas eleições gerais de 17 de agosto evidencia uma encruzilhada no campo da esquerda. O jovem senador Andrónico Rodríguez, apoiado por setores renovadores do MAS (Movimento ao Socialismo), tenta imprimir uma nova direção ao partido, afastando-se da figura cada vez mais isolada de Evo Morales. Ao lado da ex-ministra Mariana Prado, sua candidatura aposta na continuidade com renovação, tentando preservar conquistas sociais sem repetir os vícios do passado. Pela oposição, o empresário Samuel Doria Medina surge como alternativa liberal, prometendo reformas pró-mercado e um distanciamento do modelo populista dos últimos governos. Com uma democracia ainda marcada pelo trauma da crise institucional de 2019, a Bolívia busca reencontrar estabilidade política e legitimidade popular.

No Chile, a eleição presidencial de 16 de novembro é o capítulo mais recente de um processo histórico de tensão entre democracia formal e justiça social. Desde o fim da ditadura de Pinochet, o país alternou entre estabilidade macroeconômica e desigualdades profundas, até que o “estallido social” de 2019 rompeu esse equilíbrio com uma onda de protestos que exigiu uma refundação nacional. O governo de Gabriel Boric tentou dar respostas institucionais a essa demanda, mas enfrenta resistência e impasses. Jeannette Jara, ex-ministra do Trabalho e candidata da coalizão governista, defende a continuidade das reformas sociais com foco em educação, saúde e redistribuição de renda. Já José Antonio Kast, expoente da extrema-direita e defensor do legado autoritário, aposta em uma campanha de segurança pública, conservadorismo moral e liberalismo econômico. O pleito chileno não apenas definirá a presidência, mas também a direção política de uma sociedade em busca de um novo pacto social.

Em Honduras, a eleição geral de 30 de novembro será um teste da resiliência institucional do país. Após décadas marcadas por golpes, militarização e interferências externas, a eleição de Xiomara Castro em 2021 representou uma esperança de reconstrução democrática. Primeira mulher a presidir o país, Castro enfrentou desafios monumentais, como o narcotráfico, a corrupção estrutural e a violência endêmica. Embora ainda indefinido o quadro de candidatos, a disputa deverá se dar entre os tradicionais Libre, PLH e PNH (historicamente associados ao clientelismo e ao enfraquecimento do Estado). No entanto, cresce entre jovens, movimentos populares e comunidades rurais a expectativa de alternativas capazes de renovar a política hondurenha. A eleição pode ser uma oportunidade de redefinir as bases institucionais do país, com foco em justiça social, combate à impunidade e fortalecimento da cidadania.

Esses processos eleitorais revelam um continente americano em disputa: entre modelos que apostam na austeridade, no autoritarismo e na desmobilização social, e propostas que buscam ampliar direitos, renovar as formas de representação e construir uma democracia mais participativa e inclusiva. Não se trata apenas de escolher governantes, mas de deliberar coletivamente sobre o papel das instituições, os contornos do Estado e os sentidos possíveis de cidadania. O que está em jogo, em última instância, é o próprio futuro político da região: se continuará a ser moldado por estruturas excludentes, dependências externas e democracias de baixa intensidade, ou se os povos latino-americanos finalmente ocuparão o centro da cena histórica, como sujeitos conscientes de seus direitos e protagonistas da transformação de seus destinos.

Como advertiu Eduardo Galeano em “As Veias Abertas da América Latina”, a história do continente é marcada por um sangramento contínuo, no qual os interesses externos e as oligarquias internas mantiveram as maiorias sociais à margem das decisões e das riquezas que produzem. As eleições do segundo semestre de 2025, portanto, não são um capítulo isolado, mas parte de um processo de longa duração em que os povos buscam reverter séculos de espoliação. Cada voto depositado nestas urnas carrega o peso da memória e a promessa da mudança.

A democracia será tanto o espelho de nossas contradições quanto a chave para superá-las, desde que sustentada pela coragem de reinventar o comum e de construir um horizonte de dignidade, justiça e pertencimento. Porque a história, como nos ensinou Galeano, nunca diz adeus. Ela apenas diz: até logo.

Antonio Sérgio Neves de Azevedo é doutorando em Direito, em Curitiba, no Paraná.

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 04/08/2025