O déficit atuarial do RPPS da União, as omissões e a necessidade de novas regras

por Luciano Fazio [1]

Introdução.

O grave déficit atuarial do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores civis federais, estimado em aproximadamente um trilhão e meio de reais, não vem sendo objeto de medidas voltadas ao seu devido equacionamento. Tal omissão afronta as regras da Constituição Federal e contrasta com a rigorosa fiscalização imposta a Estados e Municípios, que – no tocante à amortização do déficit de seus RPPS – são frequentemente compelidos a adotar providências além de sua capacidade financeira. Diante desse cenário, mostra-se necessário revisar a exigência constitucional de equilíbrio atuarial, substituindo-a por uma regra de sustentabilidade de longo prazo mais realista e adequada à situação desses regimes previdenciários.

1 – A exigência de equilíbrio atuarial dos RPPS.

O art. 40 da Constituição Federal (CF) determina que os RPPS sejam administrados de forma a garantir o equilíbrio financeiro e atuarial.

Por equilíbrio financeiro se entende a condição em que, no exercício, a receita corrente do RPPS (proveniente das contribuições dos servidores, ente federativo e demais fontes legalmente previstas) é suficiente para cobrir as despesas com o pagamento dos benefícios previdenciários devidos, sem necessidade de aportes adicionais não programados. Focado no curto prazo, o equilíbrio financeiro nada garante para os anos vindouros.

A Emenda Constitucional nº 103/2019 detalha o conceito de equilíbrio atuarialpara os RPPS:

Art. 9º (…)

§ 1º O equilíbrio financeiro e atuarial do regime próprio de previdência social deverá ser comprovado por meio da equivalência, a valor presente[2], entre o fluxo de receitas estimadas e despesas projetadas, apuradas atuarialmente. Essa equivalência deve considerar também os bens, direitos e ativos vinculados ao regime, comparados às obrigações assumidas, de modo a evidenciar a solvência e a liquidez do plano de benefícios.

Para apurar o equilíbrio atuarial em determinada data, se considera todo o período futuro, verificando que o patrimônio do RPPS — isto é, o conjunto de bens, direitos e ativos a ele vinculados, também chamado de reserva garantidora — não seja inferior ao valor presente dos proventos futuros devidos, deduzidas as contribuições ainda a serem arrecadadas. Ao exigir a formação da reserva garantidora, o equilíbrio atuarial requer o pré-financiamento de 100% das obrigações futuras com benefícios dos segurados, abrangendo tanto os já aposentados (geração passada) quanto os servidores em atividade (geração atual). Ao contrário do entendimento comum na sociedade, a exigência de equilíbrio atuarial não se limita a uma preocupação genérica com a sustentabilidade do sistema previdenciário no longo prazo; ela implica, necessariamente, a adoção do regime financeiro[3] de capitalização[4], mesmo que implantado em um período de vários anos. De fato, sem a adoção desse regime financeiro, não há como evitar o déficit atuarial do RPPS.

Assim como a maioria dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) brasileiros, o RPPS da União não foi originalmente estruturado no regime financeiro de capitalização atualmente exigido. Por isso, o alcance do equilíbrio atuarial acarreta um elevado custo de transição, que cabe ao ente federativo instituidor do RPPS. Na prática, o sistema precisa arcar, em um único período geracional, com o pagamento de duas gerações de servidores: deve constituir a reserva garantidora para custear antecipadamente as aposentadorias da geração atual — utilizando, para tanto, a arrecadação e o investimento das contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de pagamento dos servidores ativos — e, simultaneamente, honrar o pagamento dos aposentados que não tiveram os benefícios pré-financiados.

2 – A situação do RPPS dos servidores civis da União.

O Relatório de Avaliação Atuarial do RPPS da União, referente a 31/12/2024 (RAA 2025)[5], explica que hoje despesas e receitas são administradas seguindo o regime financeiro de repartição simples — ou seja, as contribuições arrecadadas no exercício são usadas para pagar os benefícios de quem já está aposentado. No entanto, ressalva que no estudo atuarial utiliza-se o regime de capitalização, projetando os recursos necessários no longo prazo para garantir o pagamento futuro dos benefícios. E assim conclui:

No exercício analisado, o Valor Presente Atuarial dos Benefícios Concedidos e a Conceder totalizou R$ 1.813.460.806.138, enquanto o Valor Presente Atuarial das Contribuições foi de R$ 257.642.136.650. Com base nesses montantes, apurou-se um déficit atuarial de R$ 1.555.818.669.488, cálculo realizado sem considerar a premissa de reposição de servidores[6].

Essa insuficiência patrimonial não é nova. Por exemplo, era de 1 trilhão e 501 bilhões de reais de acordo com a avaliação atuarial do ano anterior[7].

Diante desse déficit atuarial, de natureza estrutural, o atuário não indicou medidas capazes de sanar o desequilíbrio atuarial do RPPS. Tais medidas são indicadas na Portaria nº 1.467, do Ministério do Trabalho e Previdência, de 02/06/2022 — que disciplina a organização e o funcionamento dos Regimes Próprios —, podendo-se escolher uma entre as quatro opções facultadas (ou até uma combinação delas). A saber:

Art. 55. No caso de a avaliação atuarial apurar déficit, deverão ser adotadas medidas para seu equacionamento, que poderão consistir em:
I – plano de amortização com contribuições suplementares, na forma de alíquotas ou aportes mensais com valores preestabelecidos;
II – segregação da massa;
III – aporte de bens, direitos e ativos, conforme art. 63;
IV – adequação das regras de concessão, cálculo e reajustamento dos benefícios, conforme art. 164.

A não indicação do plano de custeio para o equacionamento do déficit descumpriu os comandos da Portaria MTP nº 1.467/2022. Veja-se:

Art. 52. Para observância do equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS, a avaliação atuarial deve indicar o plano de custeio necessário para a cobertura do custo normal e do custo suplementar do plano de benefícios. (grifo nosso)

Parágrafo único. Ao indicar o plano de custeio a ser implementado em lei, o atuário deve considerar critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS, as características do método de financiamento adotado, a prudência das hipóteses e a qualidade da base cadastral utilizada.

Seja como for, hoje, a União não age efetivamente para garantir o equilíbrio atuarial da previdência de seus servidores civis de cargo efetivo, em prejuízo da sustentabilidade financeira do Regime Próprio no médio e longo prazo e afrontando o disposto na Lei nº 9.717/1998 (Lei Geral dos RPPS):

Art. 1º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (…) deverão ser organizados com base em normas gerais de contabilidade e atuária, de modo a garantir seu equilíbrio financeiro e atuarial, observados os seguintes critérios:

I – Realização de avaliação atuarial inicial e em cada balanço, utilizando-se parâmetros gerais para a organização e revisão do plano de custeio e benefícios. (grifo nosso)

Vale lembrar que, ao determinar que todos os entes federativos busquem o equilíbrio atuarial de seus respectivos RPPS, a legislação nacional não prevê qualquer flexibilização para o Regime Próprio da União.

O Ministério da Previdência Social tem atribuições para exigir que eventuais irregularidades sejam solucionadas nos RPPS subnacionais, bem como para aplicar sanções — como a negativa da Certidão de Regularidade Previdenciária (CRP)[8]. Para a União, contudo, não é emitida a CRP.

Diante desse cenário, assume especial relevância o controle externo exercido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) quanto à regularidade previdenciária do RPPS da União. Trata-se do mesmo tipo de controle realizado pelos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs) em relação aos RPPS dos entes subnacionais sob sua jurisdição. Há, contudo, uma diferença de atuação entre os TCEs e o TCU. Em geral, quando identificam déficit atuarial em um RPPS, os TCEs exigem a instituição de plano de amortização (ou outra medida cabível) por lei específica, com parâmetros claros e execução vinculada ao estudo atuarial. Posteriormente, monitoram o cumprimento das medidas escolhidas, aplicando sanções em caso de atrasos ou falhas na execução. O TCU, por sua vez, não vem exigindo de forma tão efetiva que a União adote medidas de equacionamento do déficit atuarial do RPPS de seus servidores civis.

3 – Observações críticas

A omissão da União quanto ao equacionamento do déficit atuarial do RPPS federal tem relação com o ônus que essa medida comportaria. A cobertura de insuficiência financeira superior a 1,5 trilhões de reais — mesmo que ao longo de três décadas e meio, como permitido pela lei — constitui tarefa quase inviável, especialmente diante de outras prioridades do Estado brasileiro.

No fim dos 1990, a equipe econômica do governo federal avaliou a possível adoção do modelo de capitalização para o Regime Próprio dos servidores civis da União, mas desistiu em razão do custo de transição envolvido. À época, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)[9] estimou que a troca do regime financeiro do RPPS da União, passando da repartição simples para a capitalização, demandaria um custo de transição equivalente a 75% do Produto Interno Bruto do país, o que acarretaria aumento insustentável da dívida pública. Cerca de um ano antes da publicação do estudo do IPEA — portanto, antes mesmo de se verificar a viabilidade do projeto de capitalização —, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 20/1998, que exige o equilíbrio atuarial de todos os RPPS do país. Na prática, essa exigência equivale a adotar um modelo de capitalização plena, pois a ausência de déficit — ou seja, o equilíbrio atuarial — ocorre apenas quando a reserva acumulada cobrir 100% das obrigações previdenciárias previstas para o futuro. Essa determinação pode ser questionada sob a ótica do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, pois impõe obrigações que, na prática, não podem ser cumpridas de forma realista.

Por essa razão, seria oportuno alterar a Constituição Federal (CF), substituindo a atual exigência de equilíbrio atuarial por outra forma de garantir a sustentabilidade da Previdência Social no longo prazo — menos onerosa para os cofres públicos e de aplicação mais viável. Uma alternativa seria criar, de forma obrigatória, um fundo de aprovisionamento, previsto no art. 249 da CF e custeado pelo ente instituidor do RPPS (da mesma forma que o ônus do equacionamento, que – hoje – cabe ao ente federativo, de acordo com o disposto na lei nº 9.717/1998). Esse fundo funcionaria como uma reserva financeira que, ao longo de um período definido (por exemplo, 15 ou 20 anos), acumularia recursos até atingir um saldo mínimo equivalente a um percentual pré-fixado — como 50% — das prestações futuras dos benefícios já concedidos pelo RPPS. Em outras palavras, o fundo não precisaria cobrir 100% das obrigações futuras, mas garantiria uma parcela significativa delas. Isso representaria uma reforma estrutural do sistema: menos ambiciosa que a capitalização plena, mas mais realista e, ainda assim, suficiente para assegurar a solvência dos regimes previdenciários no médio e longo prazo.

Do ponto de vista jurídico, essa solução preservaria a garantia constitucional de destinação exclusiva dos recursos previdenciáriospara o pagamento de benefícios, mantendo a proteção aos segurados já prevista na Constituição. Também manteria o controle externo pelos Tribunais de Contas e a transparência prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal. Além disso, a exigência desse fundo não conflitaria com o princípio do equilíbrio financeiro (art. 40 da CF).

Sob o aspecto econômico, o modelo reduziria o custo de transição, pois o fundo seria formado progressivamente, em patamares mais compatíveis com a capacidade contributiva do ente federativo. Também permitiria melhor planejamento orçamentário, diminuindo o risco de descumprimento da regra constitucional e evitando pressões fiscais abruptas.

Em suma, é inadmissível que a própria União deixe de observar os preceitos constitucionais. Por outro lado, não se pode aceitar que os entes federativos sejam obrigados a perseguir metas manifestamente inexequíveis. É necessário, portanto, pautar a revisão da exigência constitucional de equilíbrio atuarial dos RPPS, substituindo-a por outra regra que assegure uma sustentabilidade de médio e longo prazo de forma realista e viável.


[1] Matemático pela Università degli Studi de Milão (Itália), especialista em previdência pela Fundação Getúlio Vargas e consultor externo do DIEESE para assuntos previdenciários. É também autor do livro: “O que é previdência do servidor público”, Ed. Loyola, 2020.

[2]Valor presente” é o quanto vale hoje um valor que só será recebido ou pago no futuro. Para chegar a esse valor, aplica-se um desconto ao montante futuro, calculado de acordo com a taxa de juros vigente.

[3] O regime financeiro é o mecanismo que indica como as fontes de receita (no caso analisado, principalmente as contribuições) financiam as obrigações (no caso, sobretudo os benefícios).

[4] O regime de capitalização prevê o pré-financiamento dos benefícios, ou seja, a formação de reservas financeiras, obtidas por meio de contribuições e de sua aplicação financeira. Até a data da concessão do benefício, o saldo dessas reservas deve assegurar o pagamento de todas as prestações futuras devidas.

[5] Disponível em https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/orcamento/orcamentos-anuais/2026/pldo/11-iv-11-avaliacao-atuarial-rpps.pdf. Acesso em 15/07/2025.

[6] A premissa de reposição de servidores na avaliação atuarial de um RPPS é facultativa. Diz respeito à porcentagem de substituição dos servidores que se aposentam, se desligam ou falecem por novos ingressos de servidores de cargo efetivo ao longo do tempo, influenciando o tamanho futuro do quadro de ativos e, assim, as projeções de receitas e despesas previdenciárias do plano.

[7] Disponível em https://www.gov.br/previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/demonstracoes-contabeis/exercicios/2023/anexo-iv.pdf. Acesso em 15/07/2025.

[8] A CRP, emitida pelo Ministério da Previdência Social, atesta a conformidade do RPPS subnacional com as normas legais, habilitando o ente instituidor a receber transferências voluntárias da União (convênios, contratos de repasse, entre outros) e a contrair empréstimos e financiamentos com bancos públicos federais.

[9] Ver IPEA. “Texto para Discussão nº 690. Reforma estrutural da previdência: uma proposta para assegurar proteção social e equidade”. Rio de Janeiro, dezembro de 1999.

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Last Update: 04/08/2025