Promulgada em 1991, a Lei Rouanet foi recebida como um alento diante de um cenário de desmonte das instituições culturais brasileiras, promovido por um ex-presidente que, recentemente, foi aprisionado. Três décadas depois, o principal mecanismo de financiamento da cultura brasileira passou por ataques de outro ex-presidente que parece estar a caminho da prisão. Não é incomum que agentes públicos, eleitos pelo povo, em nome de ideologias extremas, ameacem nossas maiores e mais belas riquezas: a identidade e a diversidade culturais.
Estamos acostumados a enfrentar incertezas e seguimos defendendo nosso direito de criar, de sonhar e de expressar nossa vontade de ser brasileiros. Lutamos pelo desenvolvimento de nosso país, com independência e liberdade. Aprendemos com o paraibano Celso Furtado, ex-Ministro da Cultura e autor da primeira lei que destinou incentivos fiscais para cultura: a política de desenvolvimento de uma nação deve ser posta a serviço do processo de enriquecimento cultural.
A cultura brasileira é um setor produtivo, robusto, organizado e reconhecido internacionalmente. Utilizando insumos inesgotáveis e limpos, geramos renda, empregamos mais de 7,5 milhões de pessoas, trabalhadores e trabalhadoras da cultura.
Neste contexto, causa espanto o Projeto de Lei 508/2025, apresentado de forma sorrateira pelo deputado Kim Kataguiri (União-SP), que propõe sequestrar os incentivos fiscais previstos na Lei Rouanet e direcioná-los para a construção de presídios. Ainda que a segurança pública exija atenção, a eventual aprovação dessa proposta implicaria na paralisação de milhares de ações culturais em curso no país. Na prática, o que o parlamentar paulista propõe é interromper o crescimento profissional de crianças e jovens, cortar empregos, barrar sonhos, silenciar artistas e impedir a fruição da arte pelos brasileiros comuns. É substituir a arte pela cela e sufocar possibilidades, apagar futuros. É esculpir em pedra que no Brasil “a arte não precisa existir e a vida basta apenas para ser aprisionada”. Seria o avesso do avesso do avesso daquilo que um dia escreveu o poeta maranhense Ferreira Gullar.
Em 2025, os incentivos fiscais destinados à cultura, via Lei Rouanet, representam apenas 0,51% dos gastos tributários da União. Em comparação, setores como agricultura (17,6%), comércio e serviços (23,7%) e indústria (10,2%) recebem fatias muito maiores. Ainda assim, é a cultura que devolve aos cofres públicos 1,60 para cada 1 real investido.
Após anos de ataques ao setor cultural, o Ministério da Cultura reformulou o Programa Nacional de Apoio à Cultura, o Pronac, garantindo mais segurança fiscal, processual e jurídica a investidores (empresas e pessoas físicas), artistas e gestores culturais. Com sistemas modernos e transparentes, o MinC fortalece o controle social e cumpre o princípio básico da lei: contribuir para facilitar, a todos, o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício dos direitos culturais.
Diante da histórica concentração de investimentos, a ministra Margareth Menezes definiu como prioridade a nacionalização do Programa e a indução de novos investimentos em todo o País. O Pronac está viabilizando, nesse momento, mais de 4.600 ações culturais, distribuídas nas 27 unidades da Federação. Hoje, cerca de 450 instituições culturais têm suas manutenções garantidas pelos recursos da Lei.
Não é razoável que uma proposta legislativa que visa promover a construção de presídios inviabilize o desenvolvimento sustentável de territórios criativos, o funcionamento de museus, a manutenção de grupos artísticos, a produção e circulação de peças teatrais e shows musicais, a preservação do nosso patrimônio imaterial, a realização de festas populares e festivais de arte, a restauração e manutenção de monumentos históricos, a oferta de formação profissional, a produção de livros, filmes, discos, podcasts e games, e, consequentemente o fim imediato de 1,3 milhão de empregos.
A escolha está posta. E ela deveria ser fácil.