Nesse dia 22 de julho, um fato que era ao mesmo tempo esperado há décadas, e absolutamente imprevisível, tomou as notícias de todo o mundo: John Michael Osbourne, o lendário Ozzy, vocalista original do Black Sabbath, faleceu aos 76 anos, de causas não reveladas, em sua cidade natal de Birmighan, no Reino Unido. Apenas 17 dias antes, Ozzy havia cantado com o Black Sabbath em um enorme festival que marcou o último show em definitivo da banda e contou com convidados relevantes de todo o espectro do rock pesado.
As redes sociais e a mídia do metal imediatamente foram tomadas por enorme comoção (e a própria mídia burguesa de massas para além da música também noticiou o fato). Fãs e artistas choram a perda do cantor da primeira banda incontestavelmente de heavy metal, criadora e codificadora de um gênero que já gerou mais de 200.000 bandas, o mais prolífico e internacionalizado de todos os gêneros do rock, e talvez do mundo. É muito difícil estimar de forma apropriada a influência que o Black Sabbath teve, e Ozzy foi parte fundamental disso, com sua voz certeira e potente em 9 dos 19 álbuns que o conjunto inglês produziu – para não mencionar os 15 discos de longa carreira solo e as incontáveis participações em músicas de outros artistas.
A própria autora tem dificuldades de controlar as emoções enquanto escreve esse texto. A primeira música que aprendi a cantar foi “Iron Man”, com menos de 3 anos de idade, ensinada por meus pais. Se não fosse por várias das letras de músicas escritas pelo baixista Terry “Geezer” Butler, é incerto que houvesse trilhado o caminho da luta dos oprimidos e explorados. Me dói mais do que consigo imaginar que o velho finalmente se foi, porque é o fim de uma era que me gerou e gerou boa parte dos meus pilares. Uma das vozes que sempre me embalou não está mais entre nós. Me sinto sem chão.
Os Filhos do Túmulo e os Porcos de Guerra
O Black Sabbath foi fundado em Aston, um subúrbio pobre e migrante de Birmigham, cidade operária que tem a segunda maior população de toda a Inglaterra, em 1968, ainda com o nome de “Polka Tulk Blues Band”. Em 1969, já com o nome atual e com a clássica formação composta por Tony Iommi na guitarra, Geezer Butler no baixo, Bill Ward na bateria e Ozzy no vocal, a banda lança seu primeiro disco, auto-intitulado, que se tornou um sucesso mesmo com a gravadora investindo relativamente pouco, e atrai a atenção de vários outros artistas.
Algumas coisas são particularmente notáveis no Black Sabbath. A região de origem da banda reflete sua origem de classe; todos, com exceção de Geezer Butler, eram de famílias muito pobres, e todos, novamente com exceção de Butler (que era contador), eram operários industriais simultaneamente à carreira no início, ao contrário do estereótipo moderno do artista de metal de classe média que tem dinheiro para instrumentos (cada vez mais caros). A origem operária do Sabbath explica até em parte a sonoridade da banda, já que, num incidente conhecidíssimo, o guitarrista Tony Iommi, então metalúrgico, perdeu as últimas falanges dos dedos anelar e mindinho num acidente na fábrica. Estava para desistir da música quando lhe mostraram os discos de Django Rheinhardt, famoso músico de jazz, que tinha ferimentos semelhantes; sem entrar em detalhes, Iommi modificou totalmente sua forma de tocar, dando origem ao som sombrio que hoje conhecemos.
Isso também foi determinante na vida de Ozzy. Ele abandonou a escola aos 15 anos, após extrema violência devido a uma dislexia, e após ter sofrido inclusive abuso sexual por parte de outros alunos aos 11 anos. Trabalhou em vários empregos, entre eles na construção civil, como encanador, ferramenteiro, numa fábrica de buzinas, e finalmente num frigorífico. Ozzy inclusive passou um tempo preso após roubar uma loja de roupas. Mas, como outros tantos de sua geração, Ozzy era fã dos Beatles, e sonhava em ser um rockstar.
Outra coisa notável do Black Sabbath foi que a banda foi pioneira não apenas no heavy metal em si, mas inclusive em um dos seus subgêneros, o arrastado e sombrio doom metal – linhas de guitarra obviamente inspiradas em Iommi podem ser escutados no Candlemass, no Cathedral, no Pentagram, no carioca Imago Mortis e em milhares de outros mundo afora. Mesmo nos dez álbuns em que Ozzy não estava na banda o Sabbath continuou inovando e ajudando a criar outros subgêneros, especialmente quando tinha Ronnie James Dio como vocalista – que não vamos discutir aqui porque merece outro artigo só pra ele, dada a também gigantesca absurda que teve no rock, comparável à do próprio Ozzy.
E, de forma mais interessante para esse artigo, o Black Sabbath também tinha uma série de posições políticas significativamente avançadas para a época. Já em seu segundo CD, “Paranoid”, a banda traz a canção “War Pigs”, um ataque violento aos políticos burgueses que impõem guerras e mandam a classe trabalhadora para morrer enquanto ficam confortavelmente em seus palácios (“War Pigs” seria inclusive o título do álbum, mas sua gravadora de então, a Warner, impôs a mudança do título. O mesmo álbum ainda tem “Electric Funeral”, sobre o pânico de uma guerra nuclear na época, e “Hand of Doom”, que critica nominalmente a invasão do Vietnam e a aponta como uma das causas para o crescimento do consumo de drogas entorpecentes – que, como veremos mais tarde, atingiu profundamente o próprio Sabbath e principalmente Ozzy.
Isso seguiu por toda a carreira da banda. Para citar apenas alguns exemplos evidentes: “Children of the Grave”, do disco seguinte, é um chamado à resistência da juventude contra o que parecia ser a aproximação do fim do mundo, tema ainda mais atual em nossa época de colapso climático e crescimento da ultradireita a nível mundial. “TV Crimes”, na fase com Dio, denuncia os tele-evangelistas americanos e como enriqueciam (enriquecem!) prometendo o paraíso para os oprimidos. Mesmo o derradeiro álbum, o “13” lançado em 2013, tem “Age of Reason”, que repete vários dos temas de denúncia anticapitalista sutil já usados. E em sua carreira solo, “Thank God For the Bomb” volta de forma enfática à temática anti-guerra.
Uivando Para a Lua?
É importante, no entanto, que não nos esqueçamos que os membros do Black Sabbath não eram ativistas organizados, que dirá seres perfeitos, e que suas carreiras não foram sem manchas. Não se pode esquecer do noivado violento e abusivo que Tony Iommi teve com a seminal cantora Lita Ford, e várias das letras da banda tem uma carga misógina importante. Foi Geezer Butler, o mais notavelmente politizado e à esquerda dos membros, que chegou a ser detido em 2015 após agredir um nazista em um bar na Califórnia, quem escreveu todas as letras da banda, inclusive essas.
Já Ozzy… Ozzy é um capítulo à parte, a tal ponto que é difícil saber por onde começar. Desde o relacionamento ausente que teve com Thelma Riley, sua primeira esposa e mãe de seus três primeiros filhos, às agressões frequentes a outros membros de suas bandas (várias vezes ateou fogo à barba de Bill Ward, agrediu fisicamente Randy Rhoads e Rudy Sarzo), à sua relação extremamente abusiva com Sharon Arden, sua segunda esposa e mãe de seus outros três filhos. A relação com Sharon, empresária da banda e filha de Don Arden, grande empresário da música, chegou a ter uma tentativa de estrangulamento e feminicídio por parte de Ozzy que Sharon levou à polícia por um tempo antes de se reconciliarem. Ozzy também reconheceu que assassinou 17 de seus próprios gatos de estimação durante um surto de uso de drogas – e há o lendário incidente em que arrancou às dentadas um morcego morto no palco, achando que era um brinquedo.
As posições políticas de Ozzy foram poucas vezes expressas publicamente, e no geral muito confusas. Por um lado, Ozzy questionou a horrenda política de Donald Trump para a Covid-19, que levou os EUA à vergonhosa posição de maior mortandade causada pela pandemia em todo o mundo, com mais de um milhão de mortos. Ozzy também criticou pesadamente as invasões do Iraque e do Afeganistão, assim como o movimento de ultradireita no Reino Unido que levou ao Brexit. Também atacou o rapper Kanye West quando este se revelou um neonazista profundamente anti-semita.
Mas Ozzy também se disse contra sindicatos, e suas ações acerca do apartheid e genocídio que Israel comete o povo da Palestina são vergonhosos. Não apenas Ozzy se apresentou em Israel em 2012 e 2018, ignorando os apelos do movimento palestino BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), ele também assinou uma carta acusando a BBC de ser “anti-Israel” por produzir um documentário sobre Gaza. E o show final de nosso Madman, que, como dissemos, foi apenas 17 dias antes de sua morte e arrecadou incríveis 190 milhões de dólares para hospitais infantis e institutos de cuidados para pessoas com Parkinson, mesmo tendo sido um momento mágico de celebração da história do heavy metal para muitos de nós, tem manchas imperdoáveis, como a presença de Phil Anselmo do Pantera (gravado em 2015 fazendo a saudação nazista e gritando “White Power!” em um show) e, principalmente, a presença de David Draiman, vocalista do Disturbed, um ativista sionista que se dedica diariamente a espalhar ódio contra os palestinos e todos aqueles que os apoiam. Draiman chegou ao cúmulo de autografar bombas israelenses durante sua última visita à entidade colonial, o que ultrapassa a mera cumplicidade e o transforma em um dos assassinos diretos de algumas das mais de 100.000 pessoas mortas por Israel em um momento em que os acontecimentos de Gaza se tornam proporcionalmente várias vezes mais letais do que o próprio Holocausto.
Mulher Maligna?

Ozzy e sua esposa e empresária, Sharon Foto Divulgação
Muitas pessoas rebatem as críticas contra Ozzy, apontando que a quantidade colossal de drogas que ele usou por décadas, além do Mal de Parkinson que tinha revelado recentemente, tornavam o cantor quase que incapaz de pensar. No geral, aponta-se para sua esposa, Sharon, como a grande responsável não só por essas, como por quase tudo de errado na vida de Ozzy nas últimas muitas décadas.
Embora não se saiba de atestado formal de incapacidade de Ozzy, é muito provável que haja bastante verdade nisso. O Mal de Parkinson realmente pode incapacitar seus portadores, e qualquer pessoa familiarizada com as informações disponíveis públicas percebia que Ozzy simplesmente não era o mesmo que em sua juventude, seja lendo sua biografia, “I Am Ozzy”, lançada em 2010, seja na longa série de TV “The Osbournes” – reality show horroroso, diga-se de passagem. E Ozzy raramente dava declarações públicas, que dirá sozinho.
Sharon, por outro lado, era uma pessoa muito, muito pública, tendo participado (ás vezes como estrela principal) de inúmeros programas de TV, de auditório, de debate, e de outros tipos. Também escreveu três autobiografias e dois romances, e gerenciou a carreira de Ozzy desde 1979 – além de ter gerenciado outros artistas essenciais do rock e do metal como Smashing Pumpkins, Gary Moore, Lita Ford e especialmente o Motörhead. Ela se envolveu em diversos casos bem noticiados, que incluem racismo (chegando a afirmar que Meghan Markle, esposa do príncipe Harry, não era uma pessoa negra) e a demissão, após um incêndio doméstico, de um trabalhador que protestou após ter tido sua máscara de oxigênio arrancada por Sharon, que a colocou… em seu cachorro de estimação. Houve também o infame incidente em que, após um entendimento com Bruce Dickinson, vocalista do Iron Maiden, ela coordenou um grupo que bombardeou o show da banda com gelo, ovos e tampinhas de garrafa.
E Sharon, sim, era abertamente sionista. Sua assinatura consta de mais de uma carta em defesa do genocídio dos palestinos como um passo “necessário” para defender Israel; em uma entrevista, acusou Roger Waters, ex-guitarrista do Pink Floyd e talvez o mais vísivel músico defensor da Palestina, de “antissemitismo” por criticar as práticas genocidas do estado colonial; e, recentemente, ela defendeu abertamente que o visto de trabalho do Kneecap, grupo irlandês que gritou “Free Palestine” no gigantesco festival Glastonbury, fosse revogado, o que levaria à expulsão dos músicos do Reino Unido.
Não buscamos reduzir a influência nefasta que Sharon Osbourne obviamente teve sobre Ozzy. Apesar de ela ter literalmente salvado a vida do músico ao ajudar a tirá-lo do consumo quase suicida de drogas que praticava nos anos 70 e início dos 80, o enorme ódio que boa parte dos fãs do Black Sabbath, da carreira solo de Ozzy e, de fato, de heavy metal tem por ela tem boas e sólidas razões. No entanto, consideramos que também não se pode apagar que, novamente, Ozzy esteve com ela desde 1979, e Sharon nunca escondeu suas visões. É razoável crer que alguém fica casado por mais de 40 anos e nunca, em todo esse tempo, há nenhuma discussão política entre o casal? Sim, há atenuantes para Ozzy, mas não se pode absolvê-lo completamente – e redirecionar absolutamente toda a culpa para Sharon, por pior que ela seja enquanto ser humano, nos parece uma atitude inclusive misógina em algum grau.
Depois da Eternidade
A partida de Ozzy marca, sem dúvida, o fim de uma era. Foi-se a primeira voz do heavy metal, o revelador de músicos incríveis como Randy Rhoads e Jake E. Lee, que cantou em mais de 150 canções, após 56 anos do disco original do Black Sabbath. A primeira geração de nossa “realeza” está indo embora com o falecimento de nosso Príncipe das Trevas, e por mais que a progênie dos quatro garotos operários de Birmigham seja enorme, diversa e esteja espalhada por todo mundo, ele já faz e fará uma enorme falta a todos nós.
Insistimos – é importante olhar para a vida e a obra de Ozzy como um todo, não só para sua enorme influência, como também seus problemas. A mancha desprezível da presença de Draiman e Anselmo no show derradeiro É, SIM, uma mancha – e devemos aos povos de todo o mundo, especialmente da Palestina, a lembrança disso. Não esquecer significa se apropriar verdadeiramente do legado de Ozzy, evitando cometer os mesmos erros dele, para que suas mensagens sigam sendo válidas. Pois, como diz “Children of the Grave”:
“Então, filhos de hoje, escutem o que digo:
Se querem um lugar melhor para viver, espalhem as palavras hoje.
Mostrem ao mundo que o amor ainda está vivo! Vocês precisam ter coragem!
Ou vocês, filhos de hoje, serão os filhos do túmulo!”