Anistia e Impunidade: RE 881.748/RJ como novo capítulo na Justiça pelos crimes de lesa-humanidade
por João Pedro Blos Trindade e Lara Coelho de Figueiredo Voi Xavier
A conhecida Lei de Anistia ou Lei n.º 6.683/1979 foi promulgada e instituída durante o regime militar tendo como a principal finalidade a extinção da punibilidade de crimes políticos ocorridos entre 1964 a 1978, incluindo aqueles delitos que representavam graves violações aos direitos humanos. Embora esse projeto possa parecer apenas uma estratégia governista para garantir a segura transição de um Regime Militar para o Governo Civil, é na verdade mais uma tentativa de apagamento histórico vinda do Estado.
A decisão judicial do RE 881.748/RJ levada ao STF trata-se da inconstitucionalidade da aplicação da Lei de Anistia ao crime contra a vida do militante político Mário Alves de Souza Vieira, ocorrido em 1970. Mário foi levado para a tortura sob custódia estatal, desapareceu e seu corpo nunca foi encontrado. Esse momento representa um marco importante ao colocar à prova a disposição do Estado brasileiro em responsabilizar agentes públicos por crimes de lesa-humanidade cometidos durante a Ditadura Civil-Militar.
Mais do que uma controvérsia jurídica, o caso revela uma disputa de sentidos sobre memória, verdade, reparação e justiça, que são temas centrais para a reconstrução democrática do país. Sendo assim, é necessário refletir sobre os aspectos constitucionais, históricos e internacionais envolvidos na matéria, com base na atuação da Federação Nacional de Estudantes de Direito (FENED), que participa da ação como amicus curiae.
Mário Alves era jornalista e dirigente político à época de sua prisão, em Janeiro de 1970. Foi levado ao DOI-CODI no Rio de Janeiro, submetido à tortura e nunca mais foi visto. Em 2013, o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu denúncia contra cinco agentes do Estado por crime de sequestro qualificado, sob a argumentação da imprescritibilidade de delitos de natureza permanente. A tese é que, enquanto o paradeiro da vítima for desconhecido, o crime permanece em curso e, portanto, não está sujeito à prescrição.

Entretanto, a denúncia do MPF foi rejeitada 2ª Vara Federal Criminal do RJ, sob a principal alegação de que os fatos se amoldariam ao crime de homicídio, ou seja, já prescrito, e que consequentemente, estariam sob a tutela da Lei de Anistia. Posteriormente, O Ministério Público Federal recorreu ao STF por meio do RE 881.748, apontando a violação a princípios fundamentais da Constituição de 1988, especialmente, no que contraria o disposto no art. 1º, incisos II e III, art. 4º, e o art. 5º, incisos XLIV §§§ 1º, 2º e 3º.
A justiça de transição refere-se a políticas públicas destinadas a enfrentar as violações de direitos humanos praticadas em regimes autoritários, com o objetivo de garantir memória, verdade, responsabilização e reparação. No Brasil, esse processo ainda é incompleto, em grande parte devido à interpretação extensiva da Lei da Anistia conferida pelo STF na ADPF 153 (2010), que considerou legítima a anistia ampla, geral e irrestrita.
Contudo, no campo internacional, esse entendimento é distinto. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso Gomes Lund vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia), foi clara no que diz respeito a imprescritibilidade de crimes permanentes e ainda, que o desaparecimento forçado é um crime de caráter permanente, imprescritível e incompatível com anistias. Assim como, a sentença de 2010 afirmou que normas internas que inibirem, dificultarem ou impossibilitarem sanções de crimes de lesa-humanidade, de forma sinônima, violariam o direito internacional dos direitos humanos.
O Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), internalizada pelo Decreto nº 678/1992, com status constitucional após a Emenda nº 45/2004. Assim, não apenas existe fundamento legal para a responsabilização dos agentes, como também há um dever jurídico internacional que vincula o Estado brasileiro a ser cumprido.
A Constituição de 1988 institui o Estado Democrático de Direito com base na dignidade humana, nos direitos fundamentais e na prevalência dos direitos humanos. O artigo 5º, XLIV, afirma que crimes de grupos armados contra a ordem constitucional são imprescritíveis e inafiançáveis. Crimes como tortura, sequestro e desaparecimento forçado, que são típicos da repressão ditatorial, não podem ser ignorados sob a lógica da impunidade negociada e imputabilidade irrestrita.

A memória histórica, nesse contexto, deixa de ser apenas um exercício simbólico e passa a integrar o direito à verdade, à justiça e à reparação. Sendo assim, a omissão estatal em responsabilizar os agentes perpetua o sofrimento de familiares, enfraquece a democracia e normaliza a violência institucional. A ordem constitucional vigente é ferida não só pelo caso apresentado por este Recurso Extraordinário ou o desaparecimento de Mário Alves, mas sim o de tantos outros que nunca obtiveram a justiça e a reparação devidas pelo Estado que os lesou.
O STF tem diante de si uma oportunidade histórica de corrigir a rota iniciada na ADPF 153 e reafirmar o compromisso do Brasil com os tratados internacionais e os princípios constitucionais. O reconhecimento da permanência do crime e da obrigação de investigar é um passo fundamental para romper com o ciclo de impunidade que persiste desde o fim da ditadura.
Nesse cenário, a atuação da juventude jurídica organizada ganha relevância. Ao ingressar como amicus curiae, a FENED fortalece a construção de uma prática jurídica engajada com a justiça social e os direitos humanos. Reivindicar o julgamento desses crimes é também disputar a narrativa sobre o passado recente do Brasil e reafirmar o papel transformador da juventude e do Direito.
Revisitar o passado é uma tarefa constitucional. A permanência do crime exige a permanência da memória. Reparar as violações aos pilares constitucionais que sustentam as estruturas do Estado Democrático de Direito é um dever ético do Supremo Tribunal Federal. Que a justiça de transição deixe de ser promessa e se transforme em prática efetiva. E que o Direito, como linguagem pública da democracia, não sirva para silenciar, mas para dar voz aos que foram calados.
Referências:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 (Lei da Anistia).
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Recurso Extraordinário nº RE 881.748-RG/RJ. Tema 1374, 1375,1376 – STF: Análise da recepção da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, em relação aos crimes permanentes e àqueles que caracterizaram graves violações aos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar, em virtude da decisão proferida pelo STF na ADPF 153.
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