Esse Xadrez demonstrará a correção de algumas das previsões sobre a privatização da Sabesp. Ou seja, era um golpe à vista de todos desde a sua concepção, e fundado em dois princípios do chamado Padrão Jorge Paulo Lemann

Princípio 1 – corte de custos

  • Cortar todos os custos, evitar todas as soluções onerosas, desde que os prejuízos sejam difusos.

Princípio 2 – manipulação dos balanços

  • Assim como a 3G manipulava os balanços das Americanas, a Sabesp deveria  manipular as estatísticas para enganar a opinião pública com as metas de universalização da oferta de saneamento.

Princípio 3 – o CEO genérico

Coloque à frente da companhia alguém com conhecimento estrito de mercado, de custos e de estratégias de aumentar os dividendos.

Peça 1 – a privatização da Sabesp

O controle da Sabesp foi adquirido pela Equatorial, do grupo 3G, de Jorge Paulo Lehman. A Equatorial estreou no saneamento apenas 4 anos antes, operando em apenas 16 municípios — considerado um início recente e de pequena escala no setor.

Sua oferta no leilão de Amapá foi de R$ 930 milhões, superior ao dobro da proposta mais próxima (R$ 426 milhões), sendo considerada muito agressiva e arriscada pelos analistas.

A análise financeira indicou taxa interna de retorno (TIR) de apenas ~1% e um possível prejuízo de R$ 728 milhões no cenário projetado.

Nas áreas de atuação da empresa, especialmente na distribuição de energia (CEEE Equatorial no RS e Amapá), os indicadores de satisfação do cliente (IASC) ficaram entre os piores do país, segundo avaliação da Aneel.

Após assumir empresas estatais como a CEEE, a Equatorial promoveu ampla demissão de funcionários e redefinição de estrutura com objetivo de reduzir custos, gerando impacto na prestação dos serviços.

Já a privatização da Sabesp foi um escândalo. Apenas a Equatorial concorreu, ofertou R$ 67 por ação, pela fatia de 15% do capital social da Sabesp, o que totalizou aproximadamente R$ 6,9 bilhões. Com 15%, assumiu o controle total. Além disso, o preço por ação representava um desconto de 10% sobre o valor votado em bolsa.

Peça 2 – o padrão Jorge Paulo Lemann de economia

O padrão Lemann é copiado do padrão Jack Welch – o aclamado e, depois, amaldiçoado CEO da General Eletric. Consiste em um processo violento de corte de custos, visando ampliar os dividendos. Abandona investimentos em manutenção, desenvolvimento tecnológico, tudo em nome da distribuição de lucros.

Para tanto, o cabeça de ponte é sempre um CEO oriundo do mercado, em geral com parco conhecimento sobre o setor.

O CEO da Sabesp é Carlos Piani, o CEO genérico, que só sabe administrar o caixa da empresa, sem conhecimento específico do negócio. E é um cortador de custos.

Ele começou sua carreira em 1998, como analista de fusões e aquisições no Banco Pactual, onde atuou até 2004. Tornou-se sócio e co-chefe da área de private equity na Vinci Partners, entre 2010 e 2015. Presidente da PDG Realty de 2012 a 2015 — uma das maiores incorporadoras do país.

Atuou como Head de Fusões & Aquisições Globais e depois como Presidente da divisão canadense da Kraft Heinz, entre 2015 e 2018/19. A empresa protagonizou o grande escândalo da 3G e de Jorge Paulo Lehmann, antes das Americanas.

Foi Presidente e CFO da Equatorial Energia e suas subsidiárias de 2004 até 2010. Posteriormente, retornou como Presidente do Conselho da Equatorial antes de renunciar para assumir a Sabesp em 2024.

Quando assumiu a Sabesp, em setembro de 2024, uma de suas bandeiras foi gerar valor para os acionistas.

Peça 3 – o acidente

Na Boeing levou algum tempo para esse modelo derrubar aviões. A GE teve um momento inicial de elevação de valor, até ser derrubada pela falta de investimentos. E a Kraft Heniz foi o primeiro golpe de Lemann nos Estados Unidos, quando a falta de investimentos em pesquisa fez a empresa ser apanhada de calças curtas com as mudanças de hábito alimentícios dos americanos.

Na Sabesp, o desastre veio de forma muito rápida.

A Sabesp interrompeu no sábado (28 de junho de 2025) o despejo de esgoto sem tratamento no Rio Tietê, em São Paulo. A prática foi adotada como medida emergencial para esvaziar uma tubulação rompida na Marginal Tietê.

A causa foi o rompimento de um interceptor de esgoto de grande porte (3 metros de diâmetro), responsável por captar o esgoto da Zona Norte de SP (bairros como Santana, Freguesia do Ó, Brasilândia, etc.) até a estação de tratamento em Barueri.

Isso resultou na formação de uma cratera e afundamento da pista na Marginal Tietê (Ponte Atílio Fontana, sentido Castelo Branco). A Sabesp passou a bombear o esgoto bruto para o Córrego Mandaqui, que deságua diretamente no Rio Tietê, sem tratamento.

O volume despejado foi estimado em 216 milhões de litros por dia, o equivalente a 86 piscinas olímpicas/dia.

Aqui, a cronologia do desastre.

10 de abril de 2025

  • Primeira cratera surge na Marginal Tietê (Ponte Atílio Fontana, sentido Castelo Branco). A pista central é interditada pela CET. Sabesp identifica infiltração na “caixa de acesso” da tubulação.

14 de abril de 2025

  • Primeiro reparo é concluído e o trânsito é liberado.

11 de maio de 2025

  • Cratera reabre no mesmo local. Sabesp descobre que o problema era mais complexo e que seria necessário refazer a estrutura da caixa de acesso. Primeiras reportagens na TV.

Maio e junho de 2025

  • Sabesp inicia obras emergenciais para conter o solo com concreto (20 caminhões inicialmente, com previsão de aumento). Profissionais não conseguem acessar a rede sem esvaziar a tubulação.

28 de junho de 2025

  • O esgoto é despejado no rio Tietê, depois de quase 40 dias de vazamento.

O interceptor tem mais de três metros de diâmetro, carrega o esgoto de bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Santana, Mandaqui, Tremembé, Freguesia do Ó e Brasilândia, e o leva até a estação de tratamento em Barueri.

Diz o engenheiro Amauri Pollachi, que trabalhou na Sabesp:

“As informações que compartilho com você foram obtidas com engenheiros que trabalharam no projeto e na execução desse interceptor ITi 3.Quando a cratera na pista surgiu pela primeira vez, em abril, a empresa minimizou o fato. A cratera ressurgiu em 11/5 e a denúncia no SPTV2 foi em 24/6. O esquema de lançamento de esgotos estava operando pelo menos por 30 dias. Cada dia equivalendo a 86 piscinas

Rapidamente cobriu o buraco liberou a pista em 3 ou 4 dias. Por óbvio não fez uma avaliação criteriosa que poderia ter evitado o colapso total desse trecho”.

Peça 4 – os os impactos ambientais

A mancha de poluição do Tietê havia recuado. Mais de USD 6bi investidos no Projeto Tietê e a empresa que deveria zelar por esse investimento degrada violentamente esse rio.

🧪 IMPACTOS AMBIENTAIS

  • Poluição e perda de oxigênio no rio, segundo Cesar Pegoraro (SOS Mata Atlântica).
  • Risco de proliferação de bactérias, produção de metano e alteração da coloração da água.
  • O lançamento é visto como um retrocesso em 30 anos de despoluição do Tietê.
  • Pode configurar crime ambiental, segundo o engenheiro Amauri Pollachi.

O esgoto lançado comprometeu mais de US$ 6 bilhões investidor na despoluição do rio.

Período Programa / Etapa Investimento aproximado Principais ações
1995–1998 Projeto Tietê I US$ 1,1 bi (~R$ 3–4 bi) Novas ETEs, expansão da Barueri
2002–2008 Tietê II US$ 400 mi Redes coletoras, interceptores e ligações domiciliares
2010–2020 (até 2018) Tietê III US$ 2 bi (~R$ 6–7 bi) Expansão do tratamento e cobertura sanitária
2023–2026 (previsto) IntegraTietê R$ 5,6 bi + R$ 70 bi (global) Desassoreamento, fiscalização, coleta e tratam

Qual a alternativa? Segundo Pollachi:

“Poderia ter sido executado emergencialmente um by-pass, isto é, colocada  uma tubulação provisória em paralelo à danificada, que estaria em operação por curto período de tempo até ser reconstruída a original. Jamais seria a alternativa de lançar todos os esgotos diretamente no Tietê”.

Peça 5 – as alternativas descartadas

Havia várias alternativas para a Sabesp.

  • Implantação de by-pass (desvio temporário): Esta é a alternativa mais comum. Consiste em instalar tubulações provisórias para desviar o fluxo de esgoto da área afetada para outro ponto da rede ou para uma estação de tratamento, evitando que o efluente chegue ao rio sem tratamento.
  • Armazenamento temporário: Em alguns casos, dependendo do volume e da duração do problema, é possível armazenar o esgoto temporariamente em reservatórios ou tanques, para que possa ser posteriormente bombeado para tratamento.
  • Trabalho “a seco” ou com interdição programada: Quando possível, a manutenção é realizada em horários de menor fluxo de esgoto ou após o esvaziamento total da tubulação de forma controlada, minimizando o impacto. No entanto, em casos de rompimento repentino e de grandes volumes, isso pode não ser viável.
  • Melhor planejamento e manutenção preventiva: A longo prazo, a melhor forma de evitar vazamentos e rompimentos é através de um programa robusto de inspeção, manutenção preventiva e renovação da infraestrutura de esgoto, o que poderia ter prevenido a cratera e a necessidade de medidas emergenciais.

Por que não foram adotadas? Porque reduziriam o lucro da empresa. E a lógica da empresa é aumentar os dividendos e lançar a conta para os chamados interesses difusos.

Implantação de By-pass (Desvio Temporário)

  • Custo Direto: Alto a Médio. Esta alternativa envolve:
    • Aluguel/Aquisição de Tubulações e Bombas: O custo varia com o diâmetro, comprimento e tipo de material das tubulações, além da capacidade das bombas necessárias para o volume de esgoto.
    • Instalação e Desinstalação: Mão de obra especializada e equipamentos para montar e desmontar o sistema de by-pass.
    • Energia para Bombeamento: Custo da eletricidade para operar as bombas durante todo o período de desvio.
    • Monitoramento: Equipes para supervisionar o funcionamento do by-pass.
  • Vantagens: Minimiza drasticamente o impacto ambiental, evitando multas e danos à imagem. É a solução técnica preferencial para evitar o despejo.
  • Custo Estimado Hipotético: Para grandes volumes de esgoto e em condições urbanas complexas como a Marginal Tietê, a instalação de um by-pass pode variar de centenas de milhares a alguns milhões de reais, dependendo da extensão e complexidade. Isso não inclui o tratamento do esgoto desviado, que continuaria a ser feito nas ETEs existentes.

Peça 6 – o padrão Lemann de manipulação de dados

Aí se entra na segunda fase do modelo Lemann: a manipulação de dados, tal qual fez com os balanços das Americanas.

Em 22.07.2025 a Sabesp publicou um Fato Relevante, com um relatório comparativo da pré e pós-privatização. Confira a manipulação.

📋 RELATÓRIO COMPARATIVO – SABESP: PRÉ x PÓS-PRIVATIZAÇÃO (2022–2025)

Indicador Pré-Privatização (2022) Pós-Privatização (2025)
Base de cálculo da universalização Ligações de água e esgoto Economias (unidades habitacionais)
Critério de ligação Ligações físicas operacionais Inclusão virtual via sistema (TL0→TL1), mesmo sem conexão real
Pessoas com acesso novo a água Não informado diretamente 1.320.390 pessoas (baseado em 484.968 novas economias de água)
Pessoas com acesso novo a coleta de esgoto Não informado diretamente 1.371.599 pessoas (503.875 novas economias de esgoto)
Pessoas com acesso a tratamento de esgoto Estimava-se 5,2 milhões sem tratamento 1.428.944 pessoas atendidas (524.448 novas economias)
Extensão de rede de água 445 km (entre 2021–22) 567 km desde a privatização
Extensão de rede de esgoto 354 km (entre 2021–22) 307 km desde a privatização
Investimento total R$ 5,4 bilhões (2022) R$ 10,6 bilhões acumulados (2024–25)
Investimento 1S25 n/d R$ 6,5 bilhões (1S25), com R$ 3,6 bi no 2T25
Geração de empregos n/d 7.500 empregos diretos em obras; previsão de 40 mil (diretos + indiretos)
Critério para contabilização de ativo Após comissionamento e entrada em operação Antes da operação efetiva; basta execução parcial
Entidade reguladora ARSESP com poder de validação técnica Verificadores e certificadores contratados pela Sabesp
Modelo regulatório Híbrido (ARSESP + contrato) com base técnica Contratual, com menos independência técnica da agência
Meta de universalização (Fator U) Não se aplicava Metas de economias novas por tipo: água, esgoto e tratamento

📌 Observações críticas a partir do confronto com o documento técnico:

  • Os números de pessoas atendidas divulgados (1,3 a 1,4 milhão por serviço) contrariam evidências físicas (como número de redes implantadas e ausência de intervenções em favelas e áreas críticas).
  • O uso do conceito de “economias” (em vez de ligações reais) e da Tarifa de Disponibilidade cria um atendimento virtual.
  • Investimentos inflados contabilmente: considera-se ativo o que ainda não está em operação (prática alterada após a privatização). Ou seja, antes a Sabesp não contabilizava os equipamentos que não estavam em operação. Com a privatização, a Equatorial passou a contabilizar esses ativos e tratá-los como se fosse investimento novo.
  • O modelo regulatório pós-privatização fragiliza a fiscalização da ARSESP, que passou a depender de terceiros contratados pela própria empresa regulada.

Peça 7 – a privatização do saneamento pelo mundo

Vamos a um levantamento sobre experiências de privatização de serviços de água e saneamento, com foco em indicadores operacionais, impactos sociais, regulação e reversões públicas. 

A análise coloca a experiência recente da Sabesp em perspectiva com casos de outros países, permitindo avaliar riscos, tendências e lições aprendidas.

1. Panorama Internacional: Privatizações no Setor de Água

País / Cidade Modelo adotado Período Resultado predominante Situação atual
França (Paris) Concessão plena privada 1985–2010 Tarifas altas, baixa transparência Reestatizada em 2010
Alemanha (Berlim) Parceria público-privada 1999–2013 Lucros garantidos, pressão popular Reestatizada em 2013
Inglaterra Privatização total Desde 1989 Aumento de tarifas, queda da qualidade Modelo mantido, mas sob pressão
Filipinas (Manila) Concessão privada (dual) Desde 1997 Inicialmente positivo, depois crise hídrica Regulação fortalecida
Bolívia (Cochabamba) Concessão privada com aumento tarifário 1999–2000 Revolta popular, protestos violentos Concessão cancelada
Argentina (Buenos Aires) Concessão privada 1993–2006 Investimentos tímidos, crise regulatória Reestatizada em 2006
Chile Privatização regulada (venda de ações) Desde 1998 Eficiência com forte regulação estatal Modelo misto vigente

2. Riscos e Problemas Identificados em Casos Comparáveis à Sabesp

Mudança nos Indicadores de Desempenho

  • Como no caso da Sabesp, empresas privatizadas adotam indicadores “alternativos” que dificultam a comparação com o período público.
  • Ex: uso de “unidades atendidas” em vez de ligações físicas reais.

Aumento Tarifário Disfarçado

  • Na Inglaterra, as tarifas aumentaram mais de 40% acima da inflação desde a privatização em 1989, com pouca melhoria real.
  • Na Argentina, a empresa Suez aumentou tarifas sem cumprir metas mínimas de universalização — até a quebra da concessão.

Regulação Capturada ou Fraca

  • Em Paris e Berlim, os contratos dificultavam auditoria pública e davam poder excessivo à empresa privada.
  • A falta de um regulador técnico independente — como ocorre com a fragilização da ARSESP no caso Sabesp — tende a produzir assimetria de informações, dificultando o controle social.

Investimentos contábeis e não estruturantes

  • Muitos investimentos são de curto prazo e cosméticos, priorizando metas contratuais em vez de obras estruturais ou intervenções em áreas críticas (favelas, áreas rurais).
  • No caso da Sabesp, isso se reflete na maquiagem contábil via imobilização de ativos inoperantes.

3. Tendência Global: Reestatizações (Remunicipalização)

Segundo o Transnational Institute, mais de 311 reestatizações de serviços de água ocorreram entre 2000 e 2022 em mais de 35 países — a maior parte na Europa e América Latina.

Principais causas:

  • Altos custos e tarifas abusivas;
  • Falta de transparência nos contratos;
  • Desempenho inferior ao prometido;
  • Pressão da sociedade civil e movimentos sociais.

Casos emblemáticos:

  • Paris (2010): Criou a Eau de Paris, empresa pública eficiente e transparente;
  • Berlim (2013): Governo recomprou 100% da companhia para evitar cláusulas abusivas;
  • Jacarta (Indonésia, 2022): Cancelamento de contratos com empresas multinacionais por falhas persistentes.

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Last Update: 25/07/2025