As Bets e a esquerda

por Henrique Alvarez

Fenômeno das BETs leva a debate sobre coerência dentro do campo progressista.

Na última semana, um atrito entre canais progressistas (ICL e Brasil 247) teve como pano de fundo a questão das BETs no Brasil. O fenômeno da expansão das casas de apostas virtuais vem gerando graves problemas sociais no país, ao mesmo tempo em que movimenta quantidades gigantescas de dinheiro. Nesse sentido, tem se ampliado o debate sobre a posição de portais e influenciadores progressistas em relação à aceitação de recursos provenientes dessas instituições.

Não é necessário se aprofundar muito nos danos sociais causados pelas BETs, dada a farta divulgação na imprensa de seus efeitos nocivos, mas podemos destacar aqui dois dados. Segundo pesquisa do Serasa, 57% dos endividados que apostaram em BETs não eram inadimplentes antes de começarem a apostar. A Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS) afirma que, dos brasileiros que apostaram em 2024, 1 em cada 5 deixou de comprar alimentos e roupas para apostar.

Diante dessa realidade, fica nítida a necessidade de o campo da esquerda se posicionar por mudanças na legislação em relação às BETs, como forma de proteger os trabalhadores, principais vítimas desse fenômeno. Entretanto, alguns influenciadores e portais de esquerda têm aceitado receber recursos dessas plataformas para publicidade.

Aqueles do campo progressista que defendem o uso de publicidade das BETs costumam utilizar dois argumentos:

O primeiro é que, assim como no caso do uso de drogas, a legalização torna possível a regulamentação e, logo, a redução dos danos dessa prática na sociedade. Sem legalização, os jogos “correriam soltos”, adotando práticas mais abusivas com os apostadores e sem retorno para a sociedade na forma de tributos (segundo a Receita Federal, o país arrecadou R$ 3,7 bilhões no primeiro semestre de 2025 com as BETs). Com a devida regulamentação, não haveria problema em fazer publicidade para essas plataformas, já que os efeitos negativos estariam sob controle.

O segundo argumento diz respeito às limitações de financiamento para o campo progressista e o pequeno produtor de conteúdo. A batalha da comunicação na política sempre foi um desafio para a esquerda, já que a elite domina os canais de televisão, rádios, jornais e, agora, as redes sociais, sem mencionar a influência do poder financeiro. As BETs, então, passaram a despejar uma quantidade gigantesca de recursos em publicidade nos meios de comunicação, clubes de futebol e influenciadores na internet. Quem defende, dentro do campo progressista, o uso desses recursos argumenta que a esquerda não pode abrir mão dessas quantias em uma realidade de correlação de forças tão desigual.

Existem, no entanto, pontos que inegavelmente devem ser defendidos pelo campo progressista:

Em primeiro lugar, a proibição dos jogos de cassino dentro dessas plataformas, como o famoso Jogo do Tigrinho. Esses jogos deixam o apostador vulnerável a critérios nada transparentes dos desenvolvedores, que podem manipular os resultados. É possível, por exemplo, que se estimule o apostador com pequenos ganhos iniciais, reduzindo em seguida a probabilidade de vitória até que o mais incauto perca todos os seus recursos. Além disso, diferente de jogos de loteria ou de apostas em partidas de futebol, o apostador não precisa esperar por um resultado para saber se ganhou ou perdeu. As apostas são concluídas instantaneamente, sem tempo para reflexão, o que leva a um jogo mais impulsivo, viciante e danoso.

Em segundo lugar, a maior tributação das BETs, não apenas com o objetivo arrecadatório, mas também para desestimular o jogo. O governo vem enfrentando resistência para aumentar a taxação sobre as receitas dessas empresas de 12% para 18%. Segundo associações que defendem as BETs, isso praticamente inviabilizaria o negócio. Trata-se de um exagero, dado o crescimento exponencial dessas plataformas. O efeito “negativo” é justamente o desejado: impedir a expansão desenfreada dessas empresas.

Por fim, e provavelmente o mais difícil: a regulamentação da publicidade. Atualmente, as BETs patrocinam uma quantidade imensa de clubes, campeonatos esportivos, programas de televisão etc. Isso sem mencionar os influenciadores nas redes sociais que, conforme demonstrado na CPI das apostas esportivas, utilizam até mesmo vídeos prontos para fingirem que os ganhos nos jogos são fáceis. A situação chegou a um ponto em que a propaganda de uma BET, repetida exaustivamente no horário nobre da maior emissora do país, mostra um ator perguntando ao telespectador: “Sabe aquela sensação que você sente depois de apostar?”, referindo-se à liberação de adrenalina que vicia e destrói a vida de tantas pessoas ao redor do mundo.

Ainda que portais e influenciadores progressistas também recebam para fazer publicidade, esse problema precisa ser enfrentado e essa prática, rigidamente limitada. Se isso não for feito logo, a influência das BETs se expandirá conforme elas se tornarem mais importantes no orçamento de instituições como clubes e emissoras.

Embora o debate esteja acalorado, é necessário que se dialogue sobre como agir diante desse novo problema. O julgamento moral, por si só, não levará a soluções.

Henrique Fernandes Alvarez Vilas Porto é doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (UFRJ), mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança (UFF) e graduado em História (UFF).

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Last Update: 25/07/2025