do Substack: Amanhã não existe ainda

Gaza tem pressa

por Luis Felipe Miguel

Acho difícil que alguém não tenha visto, nos últimos dias, as imagens chocantes das crianças subnutridas em Gaza. Israel continua bombardeando e atirando, mas parece que sua arma preferida, na atual etapa de sua ofensiva pelo extermínio do povo palestino, é a fome.

As armas se combinam, aliás, como mostram as cenas recorrentes de soldados israelenses fuzilando pessoas nas filas da precária distribuição de alimentos.

Há muito tempo, os especialistas do Direito discutem o tema, mas hoje só muita má fé impede que se reconheça o ânimo genocida do sionismo.

A situação da Palestina – e me refiro à Palestina inteira, porque, embora em Gaza a chacina esteja mais explícita, há uma escalada de violência também na Cisjordânia ocupada e contra os palestinos no território atribuído a Israel – emerge lentamente diante da opinião pública mundial como similar à da África do Sul no final do século XX. Caminha-se para uma condenação unânime de um regime percebido como desumano e imoral.

Mas a palavra crucial do parágrafo acima é o advérbio de modo: lentamente. Diante do horror cotidiano em Gaza e na Palestina em geral, seria necessária uma resposta muito mais rápida e mais contundente.

Como no caso da África do Sul, a principal fonte de resistência à condenação do regime vem do grande capital, para quem não existe limpeza étnica, violação de direitos humanos ou mortandade de crianças, apenas oportunidades de negócios.

Lembram da “visão” de Donald Trump, que queria erguer, dos destroços de Gaza, um resort para milionários às margens do Mediterrâneo? Pois o jornal Financial Times revelou que os planos estão a todo vapor, unindo investidores de peso e um think tank liderado pelo ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair – sim, aquele, que durante certo tempo quis mostrar ao mundo que a esquerda “moderna” devia ser de direita e que o capitalismo selvagem era o futuro da civilização.

E temos todas as grandes empresas envolvidas no genocídio, fornecendo armas, veículos, softwares, suprimentos. A corajosa relatora especial das Nações Unidas para os territórios palestino ocupados, Francesca Albanese, apresentou um mapeamento compreensivo destes negócios. Nele, a Microsoft, do bilionário “humanitário” Bill Gates, aparece com destaque.

(Quando a gente joga o nome dela no Google, o primeiro link que aparece, antes mesmo daquela horrenda “visão geral” criada por IA que se tornou padrão, é para um texto de desinformação do governo israelense. Por essa e por outras, continua sendo melhor optar por buscadores alternativos, como o DuckDuckGo.)

Também como no caso da África do Sul, os Estados Unidos são um obstáculo para uma solução humanitária. Antes, porque o regime racista – além de proporcionar bons negócios para as empresas estadunidenses – era visto como um aliado confiável na disputa com a União Soviética pela hegemonia mundial. Hoje, porque Israel é como se fosse um enorme porta-aviões que o Pentágono ancorou em uma região estratégica, ao lado da Península Arábica.

Uma diferença é que o lobby pró-Israel é muito mais poderoso. A extrema-direita está muito mais forte no mundo – aqueles que ainda hoje chamam Nelson Mandela de “terrorista” ou, como fez Trump, manipulam informações para denunciar que os brancos são “oprimidos na África do Sul pós-apartheid são os mesmo que estigmatizam a resistência palestina e fecham os olhos para o genocídio em curso.

Mas, sobretudo, o lobby sionista sempre foi muito ativo e muito bem financiado. A política de Trump é mais grosseira, sem meias palavras, até histriônica, mas Joe Biden e Kamala Harris também manifestavam um apoio incondicional a Israel, despreocupado das consequências. Um dos motivos disso é o peso dos comitês pró-sionistas no financiamento de campanhas eleitorais.

Assim, Alejandra Ocasio-Cortez, que no entanto é a queridinha da esquerda do Partido Democrata, votou contra uma emenda que cortaria o financiamento estadunidense ao sistema de mísseis de defesa de Israel, o famoso “domo de ferro”. Ela se justificou dizendo que sempre votou contra o fortalecimento da capacidade ofensiva dos agressores sionistas, como se uma coisa não estivesse relacionada à outra – como se a nonchalance com que Israel ataca outros países não fosse fundada na segurança que o domo lhe proporciona.

A força do lobby sionista faz com que a denúncia dos crimes de Israel e a defesa do povo palestino continuem sendo atividades de risco. Nos Estados Unidos, claro, mas também em lugares como o Reino Unido e a Alemanha. Na mídia corporativa, o viés da cobertura é muitas vezes explícito – a BBC londrina, outrora apresentada como modelo de jornalismo profissional, serve de exemplo, com casos de censura se sucedendo.

Ao final da montagem do Rigoletto de Verdi, em Covent Garden, um bailarino subiu ao palco com a bandeira palestina – para ser expulso aos pontapés e empurrões pelo staff do Royal Ballet and Opera.

Mesmo com tudo isso, o isolamento de Israel avança. Várias empresas já recuaram em seus negócios com o regime sionista, como resultado da pressão global por boicote, desinvestimento e sanções (um panorama pode ser visto aqui). O governo da França, que sempre foi um firme aliado de Israel, anunciou ontem que vai reconhecer o Estado palestino. Já o governo brasileiro decidiu se unir a outros países na ação movida pela África do Sul contra Israel junto à corte internacional de justiça.

E, para continuar com um exemplo mais irrelevante, até a Folha de S. Paulo, sempre tão aberta a publicar os textos mentirosos do lobby de desinformação StandWithUs, publicou hoje um editorial intitulado “Morticínio em Gaza precisa ser interrompido”.

Sim, o morticínio precisa ser interrompido. Mas, para isso, o mundo precisa apertar o passo. Declarações diplomáticas são ótimas, mas o fundamental é interromper as relações comerciais com Israel.

Por mais que o governo brasileiro condene com palavras veementes o genocídio, o Brasil continua cúmplice – por exemplo, ao exportar petróleo para colocar em movimento a máquina de guerra israelense, carne bovina para alimentar seus soldados e torturadores.

É hora de romper as relações comerciais com o Estado genocida de Israel. Cada dia que passa se conta em vidas palestinas perdidas.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

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Last Update: 25/07/2025