E se os Estados Unidos nunca tivessem realmente se desindustrializado?
Nos últimos anos, tornou-se quase consenso entre políticos, analistas e acadêmicos que os Estados Unidos passaram por profunda desindustrialização. Desde a década de 1980, o setor manufatureiro americano teria minguado, perdendo espaço para a China. Essa visão tem alimentado debates sobre políticas industriais, nacionalismo econômico e até o retorno da produção doméstica. Mas, e se essa narrativa estiver apenas parcialmente correta? E se, em vez de desaparecer, a indústria americana tivesse apenas mudado de endereço?
Uma vasculhada nos dados sugere que o que os Estados Unidos perderam em manufatura doméstica, eles, ao menos parte, ganharam em presença produtiva em nível global. De outro modo, a indústria americana não colapsou, mas teria se internacionalizado.
É inegável que a participação da manufatura no PIB dos EUA caiu ao longo das últimas décadas. Em 1970, o setor respondia por cerca de 24% da economia americana; em 2023, representava menos de 11%. A queda no emprego industrial também foi marcante: mais de 7 milhões de vagas industriais desapareceram desde o auge nos anos 1970. Esses números serviram de base para a ideia de que os EUA “abandonaram” a sua indústria.
Ao mesmo tempo, a China ascendeu como potência manufatureira. Em 2023, era o maior produtor industrial do mundo, com valor adicionado estimado em de US$ 4,6 trilhões, quase o dobro do total americano, de US$ 2,6 trilhões. Para muitos, trata-se de um declínio incontestável da liderança industrial americana. Mas essa conclusão ignora um fato crucial: as estatísticas que sustentam essa visão, como o valor adicionado da indústria, são calculadas com base no território nacional. Em outras palavras: medem apenas o que é produzido fisicamente dentro das fronteiras de cada país.
O problema é que esse método ignora uma realidade cada vez mais relevante no século XXI: a internacionalização das cadeias produtivas. Grandes empresas americanas, como a Apple, Caterpillar, General Electric, Pfizer, Ford, Unilever, Colgate, entre muitas outras, mantêm vastas redes de produção no exterior, seja por meio de subsidiárias próprias, joint ventures ou contratos com fornecedores locais. Essa produção é, muitas vezes, supervisionada, projetada e controlada por engenheiros, designers e executivos nos Estados Unidos, mas acontece fisicamente em outras partes do mundo. Assim, a manufatura americana não desapareceu: ela se deslocou para outras geografias. São fábricas operando na Europa, Ásia, América Latina e em outras partes, abastecendo mercados locais e globais ou compondo cadeias de valor.
Dados do IBGE americano indicam que, em 2024, o estoque de investimento direto americano no exterior no setor de manufatura seria de cerca de US$ 1,1 trilhão, enquanto estimativas sugerem que os investimentos correspondentes da China no exterior seriam de algo em torno de US$ 200 bilhões. Essas operações industriais externas não aparecem nas contas nacionais. Portanto, ao medir apenas o que é produzido domesticamente, subestima–se a verdadeira escala da manufatura sob controle americano. Estatísticas sugerem que, somando a produção industrial no exterior comandada por empresas americanas, o “valor manufatureiro global” dos EUA poderia chegar a US$ 3,7 trilhões, número mais próximo da cifra chinesa.
Outro ponto relevante: nem toda exportação chinesa é inteiramente “made in China”. Segundo dados da OCDE, parte do valor das exportações chinesas corresponde a insumos importados de terceiros países. Estima-se que menos de 65% do valor das exportações chinesas de manufaturados seja de fato gerado dentro do território chinês. Já no caso dos Estados Unidos, essa proporção é de 78%, o que significa que os EUA concentram mais valor agregado nas etapas sob seu controle.
De outro lado, parte da confusão em torno da suposta “desindustrialização” americana decorre da maneira como medimos o PIB setorial. Parcela elevada de muitas atividades que compõem a formação do valor adicionado industrial, em especial as de alto valor, são classificadas como “serviços”. Ali estão logística, pesquisa e desenvolvimento, engenharia, software, patentes, marcas, distribuição, design, gestão de cadeias de suprimentos, dentre tantas outras. Esses serviços são integrados à produção industrial, mas contabilizados em outra categoria econômica. É possível que, ao agregarmos a capacidade manufatureira aos serviços diretamente voltados ao setor a indústria americana seja até maior que a chinesa.
Quando uma empresa como a Boeing desenha e coordena a montagem de aeronaves usando fornecedores espalhados pelo mundo, o valor adicionado nos Estados Unidos aparece majoritariamente como “serviços”, embora esteja totalmente ligado à manufatura. O caso do iPhone é ainda mais conhecido, já que o telefone é produzido e montado fora, com partes e peças de outros países. Mas é a economia dos Estados Unidos que, no final do dia, mais se beneficia, direta e indiretamente.
A verdadeira pergunta, portanto, não é apenas quanto se produz, mas quem controla e captura valor das cadeias produtivas industriais. Sob essa ótica, os Estados Unidos continuam altamente industrializados, ainda que por meio de um modelo de negócios altamente sofisticado e globalizado.
Essa constatação tem implicações importantes para o debate atual sobre reindustrialização, políticas comerciais e industriais. Não se trata apenas de “trazer fábricas de volta”, mas de entender onde estão os nós de controle, onde se gera valor e como redes produtivas podem ser organizadas de forma mais resiliente, eficiente e sustentável. É confortável, política e ideologicamente, falar na desindustrialização como perda. Mas a realidade da indústria americana parece ser mais complexa e menos melancólica do que muitos supõem.
O que ocorreu nas últimas décadas não foi um simples abandono da manufatura, mas uma transformação estrutural da forma como ela é organizada globalmente. Os Estados Unidos podem ter perdido fábricas, mas não perderam a capacidade industrial. Ela apenas se tornou transnacional.
Em tempos de redesenho geopolítico, tensões comerciais e transição energética, compreender essa nuance é essencial. O futuro da manufatura não está apenas nos galpões de fábricas ou nos robôs, mas, ainda mais, nas decisões estratégicas sobre onde, como e com quem produzir, e no aproveitamento dos lucros e influência dali decorrentes.
Jorge Arbache – Professor of Economics, analyst, writer, speaker, and business columnist specializing in Latin America and the Caribbean.
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