Por Aline Blaya*

Preta Gil se foi. Ozzy se foi. Meu tio se foi.

Uma semana de muitas perdas e muitas reflexões.

Eles foram embora e eu fiquei aqui pensando e sentindo o luto.

Acho que as três partidas me tocaram profundamente porque eram pessoas completamente diferentes, mas com algo precioso em comum.

Preta Gil era uma mulher, cis, bissexual, escandalosa e transgressora.

Preta desconstruiu a imagem da filha maluca e mimada do Gilberto Gil para construir na memória e no coração de um país inteiro a imagem de uma mulher que viveu e morreu lutando. Lutando contra o patriarcado, a homofobia, contra certezas e supostas verdades que não cabem mais.

Apresentou ao mundo outros lados da família Gil, alguns lindos e outros nem tanto, ressignificou o amor e morreu rodeada de amigos. Preta falava alto, gargalhava, se exibia e não aceitou lugares menores que seu espírito gigante.

A traição em um momento enorme de dor, virou aprendizado para ela e para todas nós. Aprendemos a dignificar nosso amor próprio, o dos Verdadeiros, e a não nos iludir e não esperar de onde nosso instinto nos avisa que já não é possível permanecer.

Ozzy, da mesma forma que Preta, também foi do início ao fim escandaloso e transgressor.

Usou todas as substâncias possíveis e imagináveis, se acidentou, se expôs e expôs aos seus. Perdeu amigos e muitas vezes perdeu a si mesmo. Em pleno palco, arrancou e cuspiu a cabeça de um morcego.

Mas, criou o rock’n’roll e memórias inenarráveis em uma geração inteira. Lutou bravamente pela vida.

Amou intensamente sua Sharon e seus rebentos.

Durante um ano planejou sua despedida, deixou o Parkinson seguir seu próprio curso e assumiu o risco de abrir mão da medicação. Estava morrendo, sabia disso, e precisava fazer sua despedida da mesma forma apoteótica que viveu.

O show aconteceu em Birmingham, na Inglaterra. A cidade abriga muitos espaços históricos que mostram a potência que foi durante a Revolução Industrial no século 18, mas neste momento, se tornou apenas o lugar onde nasceu Ozzy Osborne, o Príncipe das Trevas e onde um gigante optou por encerrar sua tragetória.

O suposto senhor da escuridão, sentado em seu trono e com o corpo visivelmente debilitado, reuniu 42 mil pessoas e os maiores ídolos de uma geração inteira.

O mundo parou para ver um homem de 76 anos cantar. A história da música jamais será a mesma, Ozzy sabia disso e arrecadou 190 milhões de dólares que foram integralmente doados para instituições de pesquisa e assistência a pessoas que sofrem com o Mal de Parkinson ou para crianças em situação de vulnerabilidade.

Há luz em meio às trevas. Ozzy morreu duas semanas depois e “Back to the Beginning: Ozzy’s Final Bow”, será lançado nos cinemas no início de 2026.

Meu tio se foi também. Um cara absurdamente filosófico, discreto e sereno. Mesmo quando suas atitudes faziam muito ruído no mundo, a resposta era a aceitação e a serenidade. Viveu. Agradou e desagradou na mesma medida. Amou e foi amado intensamente, porque amor intenso combina sim com serenidade.

O que há em comum entre estas três vidas que se foram praticamente juntas em um portal de luz, sabedoria e arte?

A busca de si. A alma humana clama por apego, mas o apego não pode prescindir de autenticidade, ou ela fica pequena.

Há neste planeta mais de 8 bilhões de seres humanos existindo, mas quantos serão os que realmente estão hoje, vivendo?!

Quantos deles estão presentes e conscientes de que hoje talvez seja seu último dia?

Quantos são gratos por ser quem são e estão realmente vivendo quem são com as dores e as alegrias que a autenticidade exige?

Em um mundo cheio de determinações do que e de quem devemos ser, tem pessoas com tanta luz que muitos simplesmente não toleram. O brilho os ofusca. Mas, não são tais pessoas o problema. Todos os julgamentos e todos os enquadros que recebem, as machucam, magoam, ferem.

Contudo, a vida pede passagem e grandes almas existem e resistem, vem a este mundo para dizer: larga de ser besta e vai viver. A vida é breve e não vai dar tempo para ninguém se esconder atrás de expectativas alheias ou mesmo das suas. Ou melhor, dará tempo, mas, será uma pena.

Não é preciso sair por aí peitando o mundo como Preta fez ou reescrevendo a história como Ozzy fez.

A autoresponsabilidade passa por reconhecer suas próprias necessidades, por ser verdadeiro consigo mesmo, por celebrar quem está ao seu lado e suportar sua luz mesmo que canse os olhos, e por não responsabilizar o mundo por fazer você feliz ou por aceitar quem você é. Apenas seja.

O inteligente aprende com seus próprios erros, o sábio aprende que se não errar, não sai do lugar. Não teme, se diverte com o próprio erro. Gargalha diante do perigo. Ensina que: só teme a morte, quem se esconde da e na vida.

Quem viveu de verdade, fatidicamente irá abraçar a morte e dizer: bem-vinda minha senhora, aceita um drink? Eu estava lhe esperando. Bora para mais uma grande experiência.

*Aline Blaya Martins: Professora da Faculdade de Odontologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Last Update: 24/07/2025