O limite do humor deve demarcar o lugar óbvio de restrição aos violentos

por Luiz Henrique Lima Faria

Foi ao escutar, pela enésima vez, a máxima “o limite do humor é ter graça ou não” que compreendi o quanto essa frase funciona como uma senha para a violência. Sempre que alguém a pronuncia, minha mente se antecipa à chegada de alguma crueldade disfarçada. Quase sempre, o que vem em seguida tenta justificar o injustificável, com piadas que zombam de minorias e reforçam estereótipos racistas, sexistas, etaristas ou capacitistas, sob a desculpa de que tudo não passa de uma legítima manifestação da liberdade criativa em nome do riso.

Tenho refletido sobre isso à luz de pensadores que admiro. Antes mesmo de recorrer à teoria, contudo, há questões incômodas que merecem atenção: por que naturalizamos tanto a ideia de que o riso é sempre inocente? Por que insistimos em ignorar que ele pode operar como uma forma sutil e eficaz de dominação? Há uma perversidade latente na maneira como certas piadas são construídas, não para questionar os detentores do poder, mas para preservá-los. Em vez de expor a injustiça estrutural, desviam a atenção escarnecendo corpos que fogem ao padrão estético dominante, vozes dissonantes e histórias que ousam desafiar o que se consolidou como norma cultural hegemônica.

O riso, quando passa a operar como instrumento disciplinador da divergência, já não nos serve como linguagem de liberdade. Torna-se ferramenta de exclusão. É nesse ponto que começo a buscar respaldo crítico em outros pensadores. Recorro ao ensaio Diante da Dor dos Outros, de Susan Sontag, que nos convida a olhar com honestidade para o modo como nos habituamos à desgraça alheia. Sob esse sentido, rir do outro é uma forma sofisticada de aplacar os alarmes da empatia. O humor, nesse caso, não revela o absurdo da desumanização: ele o reforça.

Quando naturalizamos o riso como desculpa para qualquer brutalidade, o que estamos fazendo é transferir o peso da responsabilidade ética do emissor para o receptor. A culpa passa a ser de quem se ofende, nunca de quem ofende. Reforçando minha percepção, uma passagem de Theodor W. Adorno, em Minima Moralia – reflexões a partir da vida danificada, afirma que “o riso, em si, já é o traço da barbárie”. Isso não significa que todo riso seja condenável, mas que, em muitas situações, ele serve para escarnecer os fracos, reforçar hierarquias e anestesiar o pensamento crítico.

Não construo aqui, é claro, um manifesto contra o humor. Sem ele, o mundo se tornaria insuportável. O que proponho é refletir sobre sua função e, sobretudo, sobre seus efeitos. O humor pode servir à resistência, desafiar hierarquias, subverter padrões e abrir brechas de liberdade. Mas também pode funcionar como instrumento de dominação, e com frequência é exatamente isso que faz. A fronteira entre o cômico que liberta e o que oprime não se limita ao campo estético. Trata-se, antes, de uma questão profundamente ética.

Na política contemporânea, essa fronteira tem sido atravessada com uma frequência cuidadosamente calculada. Basta observar como o humor foi instrumentalizado por regimes autoritários, de Goebbels a Steve Bannon, passando por subcelebridades nacionais de quinta categoria. A piada racista contada com ar de inocência, o deboche contra corpos obesos disfarçado de alerta sobre os riscos da preguiça, os vídeos virais que ridicularizam travestis ou pessoas neurodivergentes não se limitam a manifestações individuais de mau gosto. São peças articuladas para produzir efeitos psicossociais, acionando gatilhos de identificação emocional com discursos de ódio.

Esses gatilhos, embora frequentemente acionados pela ignorância ou pela boçalidade, não operam ao acaso quando maquinados. Daniel Kahneman, em Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar, demonstra como nossas emoções rápidas e viscerais moldam os julgamentos antes mesmo que a razão possa intervir. Nessa lógica, o humor que violenta, ao ser repetido e amplificado, atua como vetor de condicionamento: instala atalhos cognitivos que, sob o disfarce do riso, naturalizam a crueldade e esvaziam a empatia. A violência simbólica, assim, se torna palatável, assimilada sem resistência crítica, como se fosse apenas mais uma piada.

Então, para concluir esse fluxo de ideias, convido o leitor que ainda tem dúvidas sobre qual seria, afinal, o limite do humor, a refletir antes sobre até onde vai a disposição do emissor em ferir. Se o riso depende exclusivamente da humilhação alheia para existir, talvez não mereça sequer ser chamado de humor. Talvez seja apenas crueldade disfarçada, dissolvida em sorrisos que mascaram o desconforto. Rir de quem não dispõe das mesmas defesas diante da violência recebida não é ousadia, mas covardia legitimada pelo aplauso fácil da claque.

Assim, encerro esta crônica com a afirmação de que o verdadeiro limite do humor deve estar onde o riso abdica da empatia e passa a funcionar como instrumento de opressão. Nesse ponto, já não se trata mais de liberdade criativa, mas de conivência com a barbárie que projeta a distopia.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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Last Update: 24/07/2025