Por Ana Luiza Silva*, especial para o Viomundo

Nas últimas semanas, o Projeto de Lei 1904/2024, o PL do estupro, tem sido amplamente debatido pela imprensa e a sociedade civil, especialmente no que se refere aos seus efeitos práticos:

  • controle do Estado sobre o corpo de pessoas que gestam;
  • desamparo às vítimas de estupro (sobretudo, mulheres e crianças socioeconômicamente desfavorecidas e/ou racializadas);
  • retrocessos em relação aos direitos reprodutivos;
  • evangelização de um Estado laico.

Porém, pouco se tem discutido sobre o impacto deste processo na saúde mental de meninas, mulheres e pessoas que gestam.

Diversos estudos científicos no campo das Ciências da Vida e das Ciências Humanas, nas mais diferentes vertentes teóricas, já construíram um consenso em torno da importância da dimensão sociocultural na produção da saúde mental e/ou do sofrimento psíquico.

Ou seja, hoje, podemos assegurar que nossas relações históricas, econômicas, sociais e a cultura têm relação direta com a incidência de transtornos mentais e processos de adoecimento psíquico.

Lembremos, aqui, que vivemos em uma sociedade colonial, construída na esteira do estupro e morte de milhares de mulheres negras e indígenas.

A partir dessa concepção, fica mais fácil entender que, ao produzirmos e reproduzirmos uma sociedade patriarcal e culturalmente misógina, temos como consequência a fragilização da saúde mental de mulheres e meninas e a limitação da subjetividade masculina.

Valeska Zanello, a pesquisadora e professora de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB), aborda essa questão em seu livro “Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação”.

Ela nos ensina que, numa sociedade machista e binária, as tecnologias de gênero colocam permanentemente meninos e homens em situação de afirmar sua subjetivação na construção de identidades fortes e egocentradas, por meio dos dispositivos da eficácia econômica e sexual.

Assim, meninos e homens se distanciam da possibilidade de sentir e expressar sentimentos de possível fragilidade e perceber sensivelmente o sofrimento alheio.

Mulheres e meninas, por sua vez, são convocadas culturalmente a construirem-se em uma perspectiva heterocentrada, afirmando e sendo reconhecidas em suas mulheridades, majoritariamente a partir do amor e da maternidade.

Ao longo das últimas décadas, confrontando o pensamento que objetifica o corpo feminino, mulheres e comunidade LGBTQIAPN+ vêm se organizando politicamente para combater as violências baseadas em gênero em diferentes esferas da vida pública e privada.

Em consequência, observamos o fortalecimento crescente dos movimentos sociais, a ampliação da participação de mulheres e pessoas trans na representação partidária, legislativa e executiva, bem como na produção do conhecimento politicamente engajado nas universidades, etc.

Como resposta a essa resistência, movimentos conservadores em todo o mundo se organizaram para preservar seu lugar de poder.

No Brasil, essa força se manifesta majoritariamente no Congresso Nacional, fortalecida pela bancada evangélica e pelos partidos políticos de extrema-direita.

É nesse contexto que surge o famigerado PL do estupro, inequivocamente um retrocesso jurídico, político e ético.

Mas não é só isso. O PL do estupro representa também – atenção! – retrocesso subjetivo para a saúde mental individual e coletiva.

MOMENTO DRAMÁTICO

No Brasil e no mundo, estamos atravessando um momento dramático no que se refere à saúde mental, principalmente de adolescentes e jovens.

Com a pandemia de covid-19, houve aumento da prevalência de transtornos mentais.

A eles, somam-se os sofrimentos decorrentes dos processos culturais de medicalização da vida, psiquiatrização do sofrimento, cibercultura e neoliberalismo selvagem.

Os países latino-americanos, incluindo o Brasil, superam as médias internacionais de diagnósticos de depressão, ansiedade, transtornos alimentares, automutilação, ideação suicida e suicídio.

Segundo pesquisa realizada em 2023 pela ONG Think Olga, 45% das mulheres brasileiras relataram sentimentos de ansiedade, depressão ou diagnóstico de algum outro transtorno mental.

Estresse, sobrecarga, irritabilidade, sonolência, fadiga, baixa autoestima, insônia e tristeza são as queixas mais comuns que se expressaram no cotidiano das mesmas.

Quando se trata de meninas, adolescentes e jovens, esses dados são ainda mais preocupantes.

Estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), de 2023, estima que, por ano, ocorram no Brasil, 822 mil casos de estupro; 80% das vítimas são mulheres, e a maioria tem menos de 18 anos.

Desse total de 822 mil estupros, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.

Quanto aos agressores, a maioria é composta por homens parceiros e ex-parceiros, familiares ou amigos.

Não precisamos ser experts em Saúde Mental para entender o impacto dessa violência na emocionalidade e construção psíquica de mulheres, meninas e pessoas que gestam.

Essa exposição violenta, que ronda a própria casa, a família, em todos os ciclos de suas vidas, se soma aos machismos culturais e cotidianos que condicionam a liberdade e potência de seus corpos e atividades.

Esse contexto, por si só, já é adoecedor.

E qual seria, então, o papel do Estado neste cenário?

Em termos de saúde e saúde mental, vivemos em um país em que, de acordo com nossa Constituição, “a saúde é direito de todos e dever do Estado”.

O aborto legal e a saúde mental de mulheres, meninas e pessoas que gestam são, ou deveriam ser, resguardados e garantidos pelo Estado, por meio de Políticas Públicas de Saúde, Educação, Assistência Social e Segurança.

Em diferentes locais do Brasil, à despeito da misoginia, da presença de valores religiosos e morais sobre o tema do aborto, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e Sistema Único de Saúde Brasileiro (SUS), mesmo que de forma ainda insuficiente e com recursos limitados, por meio de suas Políticas e rede de serviços, se constituíram como uma fresta de cuidado para mulheres e meninas vítimas de violência, ou em condições legais para a realização de um aborto seguro.

Além dos equipamentos de suporte ao aborto legal, desde a década de 90, o Brasil tem ampliado sua rede comunitária de cuidado à saúde mental, hoje representada pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que inclui serviços da atenção primária até a terciária que podem, em parte, cuidar dos efeitos psicossociais destas violências.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira garante o aborto legal em situações de estupro ou risco de vida para a mãe. E, desde 2012, em casos de anencefalia fetal.

Nos três casos, por meio de procedimentos praticados com segurança sanitária e psicológica para as gestantes, acompanhadas por profissionais da saúde.

Em termos de políticas de segurança, os avanços foram mais lentos, mas, ainda assim, leis como a Maria da Penha e a instauração das delegacias da mulher por todo o Brasil celebram conquistas que, minimamente, desnaturalizam o dramático cenário da violência baseada em gênero.

A percepção e constatação de medidas de segurança em relação à violência protegem mulheres, meninas e pessoas que gestam, não apenas em sua integridade física, mas em sua integridade mental, emocional e subjetiva.

Por isso, o PL 1904/2024 é também um retrocesso para a saúde da mulher, para a saúde mental e para a saúde coletiva.

Colocar esse tema em debate – da forma violenta como se colocou, criminalizando as vítimas de estupro e pessoas que abortam – já é, por si uma agressão à saúde mental, uma vez que: 1) toda situação de ameaça é naturalmente ansiogênica; 2) toda vivência de abandono é potencialmente geradora de sofrimento psíquico.

A ameaça e a violência praticadas por parte do Congresso Nacional contra mulheres e meninas deveriam ser criminalizadas pelo potencial devastador para a saúde mental delas. Também pelo ódio que encorajam contra as vítimas de estupro que engravidam e as vítimas de uma gestação incompatível com a vida.

O PL 1904/2024 escancara, de forma atualizada, as violências veladas vividas por mulheres cotidianamente.

Primeiro, por sua tentativa reincidente de perseguir, legislar e controlar corpos femininos. Segundo, pelo debate descuidado que desencadeou nas redes sociais, gerando culpa, julgamentos e constrangimento às milhares de mulheres que já abortaram, pelas mais diferentes e legítimas razões.

A violência em potencial praticada por quem supostamente deveria proteger gera medo, desesperança e injustiça, contribuindo para que nosso já dramático cenário de adoecimento psíquico se agrave.

Em contraposição, a reação da sociedade civil e da imprensa cumpre papel protetivo fundamental do ponto de vista ético e político, e também clínico e sanitário.

As mobilizações organizadas e o enfrentamento desta onda de conservadorismo são uma resistência necessária.

Devem ser praticados radicalmente em todos os espaços possíveis, para que meninas, mulheres e pessoas que gestam não se percebam sós, se sintam amparadas e com ressonância subjetiva, não só do sentimento de injustiça e desesperança, mas também da força da luta coletiva, do apoio social, do esperançar de todas as pessoas, que, independentemente de suas posições partidárias ou religiosas, se ponham ao lado das pessoas que gestam e à frente da construção de um mundo mais vivível para todas nós.

*Ana Luiza Silva é Terapeuta Ocupacional, doutora em Saúde Coletiva pela UNICAMP, Docente do Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar, Coordenadora da Coordenadoria de Articulação em Saúde Mental (CASM) da UFSCar.

Referências

ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris, 2020.

THINK OLGA. Esgotadas: o empobrecimento, sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres. São Paulo: Think Olga, 2023.

FERREIRA, Helder, et al. Elucidando a prevalência de estupro no Brasil a partir de diferentes bases de dados. IPEA, 2023.

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Última Atualização: 10/07/2024