ODE À VIDA
Por Ahmad Schabib Hany*, no blog O caminho se faz ao caminhar
Como fazer uma ode à Vida quando ocorrem genocídio em Gaza e massacres na África, América e Ásia, todos sob a ordem insana e deliberada do governo dos Estados Unidos e seus aliados do ocidente, este que atribui para si a prerrogativa de justiceiro da “democracia”, da “liberdade” e da “civilização”?
Sim, vamos fazer uma ode à Vida, a despeito do explícito genocídio em Gaza e inúmeros massacres na África, América e Ásia, cujos mandantes e beneficiários diretos são os governos dos Estados Unidos, Reino Unido, União Europeia e o ente sionista que desde 1948 atende pelo nome de “Israel”.
Ode à Vida pelo triunfo do médico Ronaldo de Souza Costa, que venceu um infarto, e ao comerciante Najeh Abdel Mahid Mohad Mustafa, que está superando com a mesma resistência do incansável Povo Palestino uma dessas invertidas que a Vida faz, a de ter que reaprender a viver sem contar com a visão.
Provavelmente o doutor Ronaldo Costa, em suas tantas vindas como superintendente do Ministério da Saúde em Mato Grosso do Sul, tenha estado perto do amigo Najeh Mustafa, que em fins da década de 1980 foi dos mais atuantes presidentes da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira, quando foi realizada a Primeira Mostra da Cultura Árabe-Palestina, durante mais de dois meses na Casa de Cultura Luiz de Albuquerque, além de dezenas de rodas de conversa sobre a questão palestina e, em 27 de novembro de 1987, a criação do Comitê 29 de Novembro de Solidariedade ao Povo Palestino, que a partir de 2O23 ganhou, in memoriam, o nome de seu patrono, o saudoso e querido Jadallah Suleiman Safa.
EXEMPLOS DE RESISTÊNCIA
Cada um com seu ofício, mas tendo em comum a convicção da nobre pugna por um mundo melhor e uma sociedade mais justa, o médico Ronaldo e o comerciante Najeh, depois de passarem por uma verdadeira provação e nos submeterem a uma ansiedade infindável, nos permitiram dar graças à Vida por sua vitória sobre este drama pessoal e intransferível, que é sobreviver com êxito a uma “invertida” que a Vida nos prega…
Digno integrante do Movimento pela Reforma Sanitária, responsável por fazer consignar no texto constitucional de 1988 o direito universal não contributivo da Saúde, por meio do Sistema Único de Saúde nos artigos que tratam da Seguridade Social, doutor Ronaldo Costa é incansável defensor da integridade e integralidade do SUS.
Sua irrepreensível atuação como superintendente em Mato Grosso do Sul do Ministério da Saúde é digna de louvor, sobretudo por sua lealdade aos princípios fundantes do SUS e das demandas dos povos originários, ribeirinhos e demais comunidades tradicionais no Pantanal.
Tive a honra e o privilégio de conhecer o doutor Ronaldo Costa por meio de familiares bem antes de ser superintendente do Ministério da Saúde no estado. Seu compromisso e lealdade ao SUS desde os tempos de graduando e mestrando o tornam referência da maior credibilidade e lhe conferem reconhecimento nestes tempos sombrios em que o terceiro mandato do Presidente Lula, em que a cobiça dos membros do centrão o fazem refém de investidas que comprometem as estruturas do Estado Democrático de Direito, do qual a Constituição Federal de 1988 é pedra fundamental, isto é, alicerce irremovível, sobretudo nos direitos individuais, coletivos e difusos dela constantes.
A partir de 2023, quando assumiu o cargo no Ministério da Saúde, constatamos seu leal compromisso com o SUS, mediante o Movimento Efetiva SUS Pantanal, tendo sido, nos limites das prerrogativas institucionais, um interlocutor receptivo às demandas que os diversos segmentos sociais de Corumbá e Ladário lhe apresentaram.
Sem exagero, atua com a dignidade e sinceridade dos estadistas — pois para sê-lo é preciso ser cidadão em sua plenitude, a toda prova –, razão pela qual, não duvido, a exaustão a que chegou foi por conta das pressões advindas de todas as partes.
São testemunhas vivas dessa relevante atuação os integrantes da mobilização ocorrida nos meses de abril e maio deste ano, em que tiveram papel histórico o Cacique Negré, da Barra do São Lourenço; o Emérito Cacique Severo e sua incansável companheira, Dona Dalva Ferreira, da Aldeia Uberaba; a professora Maria da Silva Pereira, ex-diretora da Escola Monte Azul, no Assentamento Taquaral, e demais membros da Associação da Escola Agrícola Agroecológica do Pantanal; o professor Anísio Guató e demais membros da comunidade Guató em perímetro urbano; os dirigentes do Sindicato Municipal dos Trabalhadores em Educação de Corumbá (SIMTED); os dirigentes do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Pesquisa (SINPAF Pantanal); agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT); famílias dos Assentamentos Rurais de Corumbá e de Ladário; Colônias de Pescadores e Sindicato de Pescadores da Região do Pantanal; membros da Unidade Popular que se empenharam na mobilização e na divulgação dessa luta; interlocutores do Observatório da Cidadania Dom José Alves da Costa, e membros remanescentes do Comitê de Corumbá Ladário da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.
Não sem motivo, durante o período em que o doutor Ronaldo esteve internado, em consonância com o igualmente querido professor Anísio Guilherme da Fonseca, Guató, a conclamação uníssona e unânime por sua pronta convalescença foi de imediato seguida por todos os nossos interlocutores, protagonistas cidadãos nos mais diversos segmentos da população sul-mato-grossense e brasileira. Com regozijo e esperança, celebramos a sua volta às atividades, desejando-lhe longa Vida e muita saúde.
RESILIÊNCIA E DETERMINAÇÃO
Da mesma forma que o doutor Ronaldo Costa, o igualmente amigo Najeh Abdel Hamid Mohad Mustafa, comerciante de mãos limpas e muita convicção em sua trajetória, tem nas convicções por uma sociedade mais justa e um mundo melhor a base da atuação em toda a sua permanência no Brasil, desde a sua chegada nos primeiros dias de 1975, há 50 anos completos.
Aos 20 anos de idade e com o sonho de fazer uma faculdade na Palestina, o jovem Najeh Mustafa era detentor de um boletim cujas notas lhe permitiam estar entre os primeiros classificados para o curso universitário que pretendesse.
No entanto, a opressão sionista e seu expansionismo territorial sobre o que restava da Palestina milenar o levou a sair de Kafer Malek, a menos de 20 quilômetros de Ramallah, para empreender por culturas desconhecidas, na ânsia de um dia poder retornar a conviver com os seus.
A Universidade de Bir Zeit, na Cisjordânia, referência acadêmica no Oriente Médio e um importante centro de formação humanística árabe, perdeu, sem dúvida, um excelente aluno, e seu sonho estava na área das Ciências Exatas.
A título de entretenimento, ao conhecê-lo, no início da década de 1980, fazia-lhe desafios com teoremas de Geometria, leis de Física, problemas de Álgebra e questões de Biologia, que ele equacionara com brilhante desenvoltura. Na História e Geografia também sabia superar os desafios, fosse a respeito da Arábia ou da Humanidade (ou, no caso da Geografia, do Universo).
O destino de sua emigração foi Corumbá, pois aqui se encontravam muitos parentes de seus pais. Como todo imigrante recém-chegado, assim que aprendeu a compreender o português, decidiu vender roupas e calçados em uma bicicleta.
Nesse tempo não havia, sequer, mapa completo da cidade, ou mais, o famoso GPS de nossos dias. Morava em um humilde quarto de solteiro na Rua Gonçalves Dias, então periferia da cidade. De posse de sua bicicleta carregada de mercadorias, punha-se a “descobrir” os recônditos do então cosmopolita centro comercial mato-grossense.
Entre 1975 e 1979, sempre em sua bicicleta, desenvolveu sua aptidão para o comércio. Nos primeiros dias de 1979, enquanto eram instalados os três Poderes da nova unidade da federação no Brasil, Mato Grosso do Sul, Najeh Mustafa inaugurava a sua modesta loja à rua Treze de Junho, quase esquina com a Frei Mariano.
Rapidamente fez amizade, dessas para toda a Vida, com diversos árabes e corumbaenses. Lembra-se em detalhes de pioneiros como Júlio Emílio Ismael, Sonner Mali e Família, Mohamad Said, Soubhi Issa Ahmad, Mohamad Omar, Khamis Suleiman, os Irmãos Rubbin, além, é claro, de Abu Kamel e Adnan Haymour.
Como meu saudoso pai era amigo dos senhores Mohamad Bazzi (o saudoso Abu Kamel) e Hamad Haymour (saudoso pai do querido Adnan), simpáticos libaneses proprietários, respectivamente, da “Casa das Flores” e “Casa Beirute”, vizinhos na década de 1980 do amigo Najeh Mustafa, não demorei muito a conhecê-lo.
Mas nossa amizade se forjou nas atividades cidadãs desenvolvidas a partir das celebrações das vítimas do Massacre de Sabra e Chatila (ocorrido em Beirute, em setembro de 1982, sob a cobertura do comando militar israelense, que ocupava então o Líbano, inclusive a capital).
Com a vinda de Jadallah Safa a Corumbá, no início dessa década, as atividades começam a ganhar uma dinâmica maior, com planejamento e articulações políticas. Foi logo depois de uma passeata em solidariedade às vítimas de Sabra e Chatila, em setembro de 1984, que Jadallah e Najeh passaram a conversar comigo com maior frequência.
Até então, eu via o Najeh como “o amigo do Adnan e do Ozenil” (este querido amigo que conheci como vendedor da Souza Cruz, ao lado do saudoso amigo Lino, e mais tarde substituído pelo irmão dele, o saudoso José Carlos).
Em 1987, quando Najeh foi eleito presidente da Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira, as atividades desenvolvidas ao longo do ano foram significativamente mais intensas e com maior amplitude. Inicialmente, palestras (rodas de conversas), em escolas, sindicatos, centros comunitários, igrejas e movimentos religiosos de diferentes denominações.
Mas o diferencial foi que, por meio de articulação política, desta vez partidos recém-criados passaram a receber representantes palestinos, muitos vindos das capitais brasileiras. A entidade representativa da Comunidade Palestina local estava presente nos meios de comunicação e, sobretudo, no à época Centro Universitário de Corumbá.
Najeh fez um mandato digno de ser registrado nos anais da História, com a fundamental colaboração dos saudosos Jadallah Safa, Khamis Abdallah Suleiman, Kablan Hamdan, Soubhi Issa Ahmad, Márcio Toufic Baruki e Mahoma Hossen Schabib (meu Pai), e ativa participação de Yahya Mohamad Omar, Nasser Safa Ahmad, Maher Safa e Munther Suleiman Safa, então recém-chegado a Corumbá.
Essa agenda histórica contou com o aporte dos professores Valmir Batista Corrêa e Lúcia Salsa Corrêa, do CEUC/UFMS, além da professora Elenir Machado de Mello (a incansável Lena), responsável pela Biblioteca Pública Estadual Dr. Gabriel Vandoni de Barros, que coordenou a realização, organização e catalogação das centenas de peças expostas por mais de 60 dias. E a eterna gratidão aos queridos Carlos Augusto Canavarros, Humberto Morón, Dona Regina Siqueira, Dona Terezinha Silva e Lucimara Gavilán, servidores efetivos e contratados da Casa de Cultura que com muito afinco dedicaram horas a fio na execução do projeto.
A Primeira Mostra da Cultura Árabe-Palestina, realizada nos meses de julho e agosto de 1987, nas dependências da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque (o popular ILA, inativo desde fins do mandato de prefeito do atual deputado Paulo Duarte), foi um evento que trouxe a Corumbá o primeiro escalão do então governador Marcelo Miranda Soares, de cuja Fundação de Cultura o saudoso cineasta e jornalista Cândido Alberto da Fonseca era diretor-executivo.
Diretor do ILA, o general, médico e historiador Lécio Gomes de Souza, carinhosamente chamado de Doutor Lécio, fez importante fala sobre o relevante aporte cultural árabe-palestino em Corumbá. Na época, todos os jornais, rádios e canais de televisão do estado fizeram reportagens por conta da relevância da mostra, que foi posteriormente replicada em outros estados brasileiros.
O ponto alto, sem dúvida, foi a criação, em novembro de 1987, no auditório do Centro Universitário de Corumbá (CEUC), do Comitê 29 de Novembro de Solidariedade ao Povo Palestino Jadallah Suleiman Safa (acrescido do nome do Patrono como homenagem póstuma em novembro de 2023).
Além de um representante do Parlamento Palestino no Exílio, estiveram presentes ao ato constitutivo o Advogado Roberto Moaccar Orro, então secretário de Estado de Justiça de Mato Grosso do Sul; a Jornalista Margarida Gomes Marques, diretora do Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso do Sul; a Jornalista Maria Helena Brancher, do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (GAIN); a professora Gisela Angelina Levatti Alexandre, diretora do CEUC/UFMS; o professor Valmir Batista Corrêa, representando a Câmara Municipal de Corumbá; o doutor Lécio Gomes de Souza, diretor da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque; a professora Elenir Machado de Mello, bibliotecária responsável pela Biblioteca Pública Estadual Gabriel Vandoni de Barros; poeta Rubens de Castro, representando o diretor executivo da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, jornalista Cândido Alberto da Fonseca; o professor Maurício Lopo Vieira, chefe da Unidade Regional do Trabalho, representando o doutor Carmelino de Arruda Rezende, secretário de Estado do Trabalho de Mato Grosso do Sul; o comerciante Mahoma Hossen Schabib, então presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de Corumbá, e o ferroviário Manoel do Carmo Vitório, do Sindicato dos Ferroviários de Bauru e Mato Grosso do Sul, indicado por aclamação como primeiro coordenador do Comitê 29 de Novembro de Solidariedade ao Povo Palestino.
Como reconhecimento e senso de gratidão, precisamos deixar consignados na memória os nomes dos médicos oftalmologistas Eduardo Lacerda e Arthur Rezende, bem como dos queridos amigos Tony do Táxi, Anwar Gharib, Nunes da Farmácia, Dona Amada da Lanchonete e Seu Pedro da Garapa, que como cidadãos e pessoas de boa-vontade e generosidade fraternal, que permitiram que o amigo Najeh chegasse a tempo de passar pela cirurgia a que foi submetido e tivesse sua vida preservada, ainda que com a remota possibilidade de voltar a enxergar, em razão do estrago feito pelas bactérias que atingiram seus olhos. Parodiando o legado do saudoso professor Octaviano Gonçalves da Silveira Junior, na década de 1970, “um bom ser humano encontra sempre outro bom ser humano que o protege”.
Fundamental, portanto, que a História registre em seus anais a importante atuação de Cidadãos [maiúsculas, por favor!] como o médico Ronaldo Costa e o comerciante Najeh Mustafa — bem como Tony, Anwar, Nunes, Amada e Pedro –, cujos aportes para a elevação do nível de consciência da humanidade os tornam protagonistas de primeira grandeza nesta sociedade eivada de cobiça, mesquinhez e injustiça, muita injustiça.
Nós, do movimento popular, com a necessária consciência histórica — entendendo História como processo, não como disputa de narrativas ou superposição de fatos ou coleção de personalidades –, sabemos que o maior reconhecimento dos queridos amigos, cuja vitória sobre as adversidades inerentes à sua saúde celebramos nesta ode, é a emancipação do povo: no caso brasileiro, das camadas populares; no caso palestino, de sua população milenar oprimida por sucessivos impérios e explorada pelos seus serviçais por séculos a fio.
Vida longa e muita saúde, doutor Ronaldo Costa e amigo Najeh Mustafa!
*Ahmad Schabib Hany, graduado em História, já lecionou a disciplina em Corumbá (MS). Ativista de movimentos por democracia, direitos humanos, cidadania, saúde pública, povos indígenas, preservação do meio ambiente. Atualmente, está empenhado na criação da Universidade Federal do Pantanal, em torno da qual se reúne o Movimento UFPantanal.