A Teologia da Libertação e o Apocalipse nos Trópicos

por Gustavo Tapioca

No documentário Apocalipse nos Trópicos, a diretora Petra Costa lança luz sobre uma das mudanças mais profundas e silenciosas do panorama político-religioso brasileiro. A substituição progressiva da teologia da libertação por uma teologia de orientação conservadora, importada dos Estados Unidos, que ficou conhecida como teologia do domínio.

Longe de ser apenas uma transformação interna das igrejas, esse processo representa uma inflexão geopolítica de peso, que marca o abandono de um projeto de evangelho comprometido com a organização popular, em favor de um cristianismo de guerra cultural, moralismo punitivo e busca desenfreada por poder.

A teologia da fé e justiça social

Nascida na América Latina no final dos anos 1960, a teologia da libertação foi uma resposta teológica e pastoral à realidade de opressão, miséria e desigualdade que assolava os povos latino-americanos. Inspirada por uma leitura engajada do Evangelho e pelas análises sociais progressistas, essa corrente propôs uma nova forma de vivenciar o cristianismo ao lado dos que lutavam contra os mecanismos estruturais de exclusão.

No Brasil, a teologia da libertação ganhou corpo nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), articuladas dentro da Igreja Católica sob a liderança de figuras como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Betto, Leonardo Boff, entre outros. Essas comunidades criaram redes de solidariedade, organização popular e resistência durante a ditadura militar. Foram uma força viva de educação popular, mobilização social e formação política dos setores marginalizados.

Diferentemente da religiosidade de templo e hierarquia, as CEBs encarnavam um cristianismo comunitário, horizontal, profundamente ligado às lutas concretas do povo. A fé era indissociável da justiça social. O Evangelho não era só promessa de salvação futura, mas exigência de transformação do presente.

O contra-ataque veio Washington

O impacto político da teologia da libertação não passou despercebido. Nos bastidores da Guerra Fria, a Igreja latino-americana progressista começou a ser vista por Washington como um obstáculo geopolítico. Sob o governo Reagan, os Estados Unidos passaram a investir pesadamente na contenção dessa teologia, apoiando o avanço de igrejas evangélicas neopentecostais, majoritariamente vindas dos EUA, com uma nova doutrina: a teologia do domínio (ou da prosperidade).

A teologia do domínio se opunha frontalmente à libertação dos pobres. Em vez de denunciar estruturas injustas, ela pregava que a fé leva ao sucesso individual, que a pobreza é sinal de fracasso espiritual e que os “fiéis” devem conquistar todas as esferas do poder — governo, mídia, economia, educação, família e cultura — para “restaurar” a sociedade cristã. Em suma, uma doutrina de dominação política mascarada de espiritualidade.

A teologia do domínio chegou ao Brasil por meio de igrejas como a Universal do Reino de Deus e outras denominações pentecostais e neopentecostais, rapidamente organizadas em redes nacionais com suporte estrangeiro. Ao contrário da organização comunitária da teologia da libertação, as novas igrejas criaram impérios midiáticos, bancadas parlamentares e alianças com o poder econômico e militar.

O desmonte da teologia da libertação

A partir dos anos 1990, a teologia da libertação começou a perder espaço tanto na Igreja quanto na esfera pública. Enfrentou repressão interna (com a intervenção do Vaticano, sobretudo sob João Paulo II e Bento XVI), abandono institucional, e uma campanha difamatória que a rotulava de “comunista”, “herética” ou “inimiga da fé”.

Ao mesmo tempo, a ascensão das igrejas evangélicas conservadoras conquistou corações, votos e poder político. O moralismo sexual, o anti-intelectualismo, a demonização da esquerda e o culto à obediência foram alçados ao centro do discurso religioso popular. O neopentecostalismo tornou-se um dos principais pilares do bolsonarismo e da extrema direita, fornecendo base ideológica e militância ativa.
Enquanto isso, os ideais da teologia da libertação foram confinados às margens, ainda vivos em algumas pastorais sociais, movimentos de base e iniciativas progressistas dentro e fora da Igreja, mas sem o mesmo protagonismo de décadas anteriores.

A disputa pelo futuro

O que Petra Costa revela em Apocalipse nos Trópicos é que essa mudança religiosa não é um mero detalhe cultural. Ela está no cerne do projeto de dominação neoliberal e autoritária que se espalhou pelo Brasil e pela América Latina. A derrota da teologia da libertação é, em parte, a derrota de uma utopia democrática, solidária, plural — e a ascensão de uma lógica de poder que mistura mercado, fé e repressão.

Mas a história não está encerrada. Diante de um mundo em colapso social, ambiental e espiritual, a mensagem da teologia da libertação volta a fazer sentido. Em tempos de destruição e apatia, ela nos recorda que a fé pode ser força de esperança ativa, de luta por justiça e de reinvenção da convivência humana. Sua voz persiste, ainda que abafada, como semente em solo seco. E talvez, como ensinam os profetas, o tempo da colheita volte a chegar.

Gustavo Tapioca é jornalista formado pela UFBa e MA pela Universidade de Wisconsin. Ex-diretor de Redação do Jornal da Bahia. Assessor de Comunicação da Telebrás, Oficial de Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do IICA/OEA. Autor de Meninos do Rio Vermelho, publicado pela Fundação Jorge Amado.

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Last Update: 20/07/2025