Bolsonaro em entrevista coletiva. Foto: reprodução

Na manhã de hoje, por trinta longos e dolorosamente ininterruptos minutos, Jair Bolsonaro ocupou um púlpito situado em algum espaço secundário do Senado Federal, onde pôde exercer, com a habitual profusão, sua única especialidade, que é a arte de falar sem dizer. Por vocação e mérito, a sessão performática na qual o ex-presidente tentou emular a autoridade que jamais possuiu transformou-se num verdadeiro suplício para a audiência, eu incluído, naturalmente. Desalinhado e desajeitado dentro de um terno mal cortado, o corpo que outrora circulava nos ombros de bajuladores em passado recente jazia ali, presente à missa, cercado por um oceano de ausências; apenas o filho chocolatier, aquele da loja mais rentável da rede Kopenhagen, figurava ao lado de meia dúzia de bolsonaristas-raiz, talvez os últimos exemplares de uma fauna política em vias de extinção. O corpo, lançado ao mar, boiava placidamente no vazio da própria irrelevância.

Como de costume, Jair não conseguiu construir uma única frase que sobrevivesse ao léxico ou à lógica. Atropelou pronomes, engasgou verbos, inundou o recinto com perdigotos e delírios em proporções equivalentes, encharcou o tapete do Senado com palavras órfãs, não-ideias, mentiras, muitas mentiras e viscosa baba ideológica. Tratou-se, portanto, de mais um horroroso dia bolsonarista sob a beleza arquitetônica da Praça dos Três Poderes, com a única diferença de que agora ele já não ocupa nenhum dos três.

Determinado, assisti ao vídeo. E, como quem contempla atentamente um acidente em câmera lenta ou quem insiste em procurar sinais vitais entre escombros, encontrei dois fragmentos que, com alguma indulgência e um bom dicionário à mão, talvez pudessem ser classificados como gramaticalmente válidos, embora semanticamente permaneçam, sem margem para dúvida, absolutamente irredimíveis. São eles:

“Vou enfrentar o julgamento, não tenho alternativa.”
“Eu estou em condições, se o Lula me der meu passaporte, eu negocio com o Trump.”

A primeira frase, embora formalmente correta, é semanticamente inútil, banal de tão óbvia. O Código Penal é explícito: quem comete crime deve enfrentar julgamento. Bolsonaro, no entanto, parece ter descoberto essa norma ali mesmo, ao vivo, como se fosse tomado por uma súbita revelação mística. Talvez, se Michelle ali estivesse, traduzindo o transe em glossolalias devocionais, o episódio ganhasse contornos litúrgicos. Mas não, ela mantinha-se, como de hábito, a léguas da cena e, por extensão, do égua. A sutileza, entretanto, reside no complemento dramático da frase, “não tenho alternativa”, que, vertido ao português-bolsonarista, adquire a precisão sintética de uma confissão: “tentei golpe, tentei fuga, tentei choro, tentei Trump… mas sifudi”.

A segunda frase exige mais esforço hermenêutico, maior poder interpretativo. São três núcleos gramaticais, três absurdos semânticos.

“Eu estou em condições” — de quê, exatamente? Se for para vender gatonet, negociar joias de origem duvidosa ou coordenar rachadinhas em Rio das Pedras, talvez. Fora isso, é delírio delirante.

“se o Lula me der meu passaporte” — aqui temos um ligeiro desvio funcional: o presidente da República é confundido com um balconista de aeroporto ou, quem sabe, com um porta-passaportes institucional. Caso a referência seja à decisão do STF que reteve o documento para evitar fuga, o pedido, por uma questão de decoro e competência, deveria ser protocolado diretamente no balcão do Supremo, e não transmitido em rede nacional de devaneios.

“eu negocio com o Trump” — esta frase, por fim, é surrealismo puro nos três estados da matéria: sólido, líquido e gasoso (e, por que não, um toque de plasma também encaixaria perfeitamente). As palavras “negociar” e “Trump” simplesmente não coexistem pacificamente numa mesma construção sintática. Segundo a organização Duty to Warn, Trump é um narcísico sociopata narcisista (a repetição não é um erro, mas uma ênfase clínica), o que o torna, por definição, incapaz de negociar. Esse tipo de criatura não dialoga, impõe. Mas talvez Bolsonaro veja nele uma alma gêmea, uma afinidade eletiva de diagnósticos.

Curiosamente, essas duas frases, somadas, formam um ciclo delirante dotado de alguma coerência interna: o “não tenho alternativa” justifica-se pelo “não tenho passaporte”, o qual, por sua vez, inviabiliza o “negociar com Trump”, que seria, na mente delinquente do ex-presidente, a chave mágica que abriria todas as portas de seus labirintos judiciais.

Espremendo o conteúdo e extraindo todo o suco dos trinta minutos de devaneios, o que vi foi o lamento público de um homem que sabe muito bem o que fez. Bolsonaro tem plena consciência dos crimes em série que cometeu. Sabe que será apenado e sabe que o jogo chegou ao fim. Melhor seria Jair se acostumando, mas como todo fascista, é covarde, cagão, peidorreiro e preferiu, sem o menor pudor, se humilhar diante das câmeras, rogando para “negociar com Trump”. Como se existisse, em algum canto do planeta, uma embaixada do caos com expediente aberto aos domingos, feriados e dias santos.

Neste ponto, de fato, não há alternativa para Bolsonaro. Para o Brasil, felizmente, há todas, e todas elas prescindem dele. Enfim, pelas mãos da justiça, sopra um alento de paz sobre nossos brasileiros corações cansados. E eles estavam mesmo precisando.

Adendo: sobre o perfil psicológico de Trump

A organização Duty to Warn (“Dever de Avisar”) reúne milhares de profissionais de saúde mental nos Estados Unidos e foi criada com o propósito de alertar a sociedade sobre os riscos psicológicos associados a figuras politicamente poderosas. Entre seus fundadores estão o psicólogo John Gartner, ex-professor da Universidade Johns Hopkins, o psiquiatra Lance Dodes, especialista em vícios, e a psiquiatra forense Bandy Lee, da Universidade de Yale.

Em 2017, o grupo publicou um relatório sobre Donald Trump, questionando abertamente sua aptidão mental para exercer o cargo de presidente. O diagnóstico coletivo identificou três transtornos de personalidade com notável clareza: o transtorno narcisista, marcado por grandiosidade e ausência de empatia; o transtorno antissocial, caracterizado por impulsividade, manipulação e desprezo pelas normas sociais; e o transtorno paranoide, que se manifesta como desconfiança persistente e tendência à hostilidade. A conclusão, para os especialistas, era inequívoca: Trump representava não apenas um risco institucional, mas uma ameaça concreta à democracia e à segurança nacional.

 

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Last Update: 18/07/2025