Peter Navarro durante convenção republicana em Milwaukee, no Wisconsin, em julho de 2024. Foto: Mike Segar/Reuters

Mesmo sabendo que é inexistente, gastei um bom tempo tentando entender a lógica por trás do tarifaço trumpiano. Passei vários dias lendo jornais, revistas e papers acadêmicos recentes, principalmente dos EUA. O consenso geral é de que não há lógica alguma, apenas sound and fury; como tudo que cerca o fascismo, a argumentação trumpista não passa de embromação rasteira destinada a enganar seu bovino rebanho.

Mas o tempo dedicado às leituras não foi em vão. Não descobri lógica, mas encontrei o falsário por trás da não lógica, uma espécie de Posto Ipiranga do fascista alaranjado. Tão picareta quanto Paulo Guedes, o cabra atende pelo nome de Peter Navarro, largamente conhecido como o “embusteiro-czar do tarifaço de Trump”.

De saída, é preciso dizer que Peter Navarro não é um gênio incompreendido. O homem que hoje ocupa, novamente, um dos postos mais influentes do governo dos Estados Unidos, na condição de conselheiro sênior para comércio e manufatura no segundo mandato de Donald Trump, está longe de ser uma mente brilhante reprimida pela ortodoxia acadêmica. Ao contrário, Navarro representa a epítome do tecnocrata ressentido, que trocou o rigor da economia pelo conforto do fanatismo ideológico. E mais: ele constitui o exemplo cristalino de como o trumpismo converteu a fraude intelectual em ferramenta de governo.

Navarro foi professor universitário durante décadas, ostenta um doutorado por Harvard e publicou dezenas de livros. Contudo, seu currículo, ao contrário do que se esperaria, não reflete excelência acadêmica, mas sim obsessão. Sua produção foi ignorada pelas grandes revistas, suas ideias, descartadas por colegas, seus métodos, questionados por qualquer um com familiaridade mínima com estatística e bom senso. O ponto de virada em sua trajetória ocorreu quando decidiu vestir o figurino do arauto anti-China, culminando no panfleto histérico Death by China, um libelo paranoico disfarçado de teoria econômica, que caiu nas graças de Jared Kushner, o genro todo-poderoso de Trump, e do criminoso Steve Bannon — sentenciado com duas condenações penais, comprou a liberdade condicional e permanece solto. Foi pelas mãos desses dois delinquentes que o embusteiro acadêmico ascendeu à condição de guru oficial da Casa Branca.

Ao lado de Trump, Navarro transformou ressentimento em política pública. Foi o principal ideólogo do tarifaço que marcou o primeiro governo. Apresentou como “guerra econômica justa” um conjunto de tarifas desastradas, as quais sabotaram cadeias globais, encareceram produtos e sufocaram pequenos produtores. A agricultura americana perdeu mercados inteiros. A indústria estagnou. O consumidor pagou a conta. Um relatório do Washington Post apontou que os danos da política tarifária concebida por Navarro foram amplos, duradouros e, sobretudo, evitáveis. Mesmo diante das evidências, ele seguia em frente como um missionário de olhos vidrados, garantindo que tudo ocorria conforme o “plano dominante”. Sua lógica era simples: se as evidências não sustentam a doutrina, muda-se a realidade, não a doutrina.

Enquanto corroía a economia produtiva, Navarro também patrocinava o corte de impostos mais regressivo em décadas. A promessa era conhecida: crescimento econômico, retorno de fábricas, geração em massa de empregos. A realidade, no entanto, revelou-se outra: 1,5 trilhão de dólares em isenções concentradas nos mais ricos, um rombo fiscal monumental e nenhuma retomada estrutural da indústria. O que se viu foi a repetição do velho script: empresas recomprando ações, bilionários acumulando riqueza e o país afundando em desigualdade. Ainda assim, Navarro não se abalou. Seu compromisso nunca foi com os resultados, mas com o espetáculo.

Com a chegada da pandemia de COVID-19, sua toxicidade alcançou novos patamares. Espalhou desinformação, atacou instituições científicas e acusou, sem qualquer prova, a China de ter criado o vírus de forma deliberada. Seu objetivo não era esclarecer nem proteger, mas sim alimentar a máquina de ódio racial e geopolítico que sustenta o trumpismo. Cada frase funcionava como combustível para o pânico; cada relatório, como peça de ficção embalada sob o disfarce de expertise técnica.

Donald Trump fazendo arminha, sério
O presidente dos EUA Donald Trump – Reprodução

No entanto, foi após a derrota de Trump em 2020 que Navarro revelou plenamente seu instinto autoritário. Redigiu um relatório grotesco sobre supostas fraudes eleitorais, calcado em fontes como OAN e Newsmax, e foi coautor do plano “Green Bay Sweep”, que consistia numa tentativa aberta de sequestrar o processo constitucional e impedir a certificação da vitória de Joe Biden. Convocado a depor no Congresso, recusou-se. Foi julgado por desacato, condenado e preso por quatro meses. Sua saída da cadeia foi simbólica: aclamado como herói por uma convenção republicana, tornou-se mártir oficial do trumpismo. Não há vergonha institucional que resista a uma plateia suficientemente fanática.

Agora, em 2025, Navarro está de volta. E, com ele, retorna também a mesma receita venenosa: tarifas sobre semicondutores, carros elétricos, alimentos e eletrônicos. Trata-se de uma tentativa de elevar tributos sobre produtos chineses a patamares de até 60%, mesmo que isso sabote cadeias produtivas integradas com aliados estratégicos, como México e Canadá. É a economia da revanche, o nacionalismo econômico transformado em ritual de autoflagelação. Não há ganho produtivo, não há eficiência, não há estratégia. Apenas punição, ressentimento e slogans de Guerra Fria.

Talvez o aspecto mais perigoso de Peter Navarro não resida exatamente nas políticas que promove, mas sim na estrutura moral que representa. Ele é o tipo de operador que não precisa acreditar em nada, exceto na utilidade política da mentira. Criou um alter ego, “Ron Vara” — anagrama do seu próprio nome —, para citar a si mesmo como autoridade em seus livros. Quando desmascarado, respondeu com ironia, dizendo tratar-se de “uma brincadeira literária”. O problema é que essa brincadeira ajudou a moldar políticas de Estado. E isso não é apenas ridículo, é criminoso.

Navarro é o rosto mais polido de um extremismo travestido de técnica. Seu fascismo não se manifesta em gritos, mas em gráficos tortos, relatórios distorcidos e teorias com aparência de ciência. Ele não precisa rasgar a Constituição; prefere miná-la com notas de rodapé e estudos malfeitos. Seu projeto é a desinformação legitimada por um crachá de conselheiro. É o tipo de homem que fala em nome da nação enquanto sabota suas bases produtivas, institucionais e morais.

Peter Navarro não é um pensador incômodo. Não é um herege criativo. É um falsário metódico, um extremista de gabinete, um operador do caos. Representa o que acontece quando o embuste se organiza, ganha salário público e elabora memorandos. Sua volta ao poder cristaliza um novo tipo de autoritarismo americano — não aquele do tanque nas ruas, mas o que opera silenciosamente por meio de PowerPoint no Salão Oval.

Essa trajetória não deve ser interpretada como um desvio. Ela é, de fato, o plano. E, enquanto Navarro continuar sendo visto como conselheiro — em vez de ser compreendido por aquilo que verdadeiramente é, ou seja, um propagandista perigoso com diploma de elite —, os Estados Unidos seguirão dando passos calculados rumo ao abismo institucional. O delírio, sob seu comando, não é acidente: é método. E, como todo método bem executado, tende a produzir exatamente o desastre que promete evitar.

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Last Update: 15/07/2025