Em tempos de fake news, é preciso elevar os padrões de correção de erros jornalísticos
por Lívia de Souza Vieira
Decorridos sete meses deste ano de 2025, pelo menos três erros jornalísticos tiveram alcance e repercussão nacionais. Trata-se de uma compilação incômoda, já que ninguém gosta de errar e, consequentemente, de discutir o erro. Mas é o objetivo deste texto que, ao destrinchar os casos e atitudes das organizações jornalísticas, pretende contribuir para que o incômodo se transforme em alguma melhora na gestão editorial em sites de notícias e redes sociais.
21 de janeiro. O coach e candidato à prefeitura de São Paulo em 2024, Pablo Marçal, divulgou um vídeo em suas redes sociais em que aparece ao lado do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, um dia após a posse do republicano. Marçal pede para a América “salvar o Brasil”. Rapidamente, a informação se espalhou por diversos outros sites jornalísticos, como CNN Brasil, Metrópoles, UOL, Terra, Poder360, entre muitos outros. Os textos mencionam uma consulta à assessoria de imprensa de Marçal, que não confirmou a data da publicação. Mesmo assim, as publicações nos respectivos sites davam a entender que o encontro havia sido durante o evento de posse. Em coluna no Intercept, Paulo Motoryn afirma que “a imprensa comprou” uma estratégia pensada de Marçal, na qual sua assessoria de imprensa desempenhou um papel central.
Ainda no fim da tarde do mesmo dia, a colunista d’O Globo Malu Gaspar publicou que o vídeo de Marçal não se deu durante a posse de Trump, em Washington D.C. Segundo ela, a gravação aconteceu na Flórida, no resort Mar-a-Lago, que pertence ao presidente norte-americano – portanto, antes da posse. E atribuiu a informação a deputados e aliados de Jair Bolsonaro, que reconheceram o local da gravação. Somente no dia 23, dois dias após a repercussão do vídeo, Pablo Marçal admitiu, em entrevista a O Globo, que a gravação era antiga e que “segurou” até a posse para valorizar o material.
3 de abril. O influenciador Felipe Neto divulgou um vídeo, com referências visuais e textuais ao romance 1984, dizendo que seria candidato à presidência da república. A notícia teve repercussão em diversos veículos, entre eles G1, CNN Brasil, Folha e Agência Estado. Horas depois, anunciou que se tratava de uma estratégia de marketing para vender a versão em audiolivro da obra de George Orwell. Em sua coluna na Matinal, o professor Juremir Machado afirma que o influencer “deitou e rolou” na mídia tradicional e que “qualquer leitor de orelha de livro ou de verbete da Wikipédia poderia perceber a pegadinha e as referências embutidas no discurso”. Ele lembra que o G1 chegou a incluir no título que “fãs perguntam se anúncio é real”. “Os fãs talvez estivessem mais atentos”, destaca Juremir. “A arrogância da velha mídia não permitiu admitir a barrigada”, disse o professor, acrescentando que a Veja ainda creditou a Felipe Neto o “papelão”.
Na Folha, o jornalista Filipe Vilicic fez a crítica: “Boa parte da mídia se rendeu à superficialidade das redes: sem apurar com fontes primárias; sem questionar atores políticos; sem esperar a resposta do influenciador. Desconfio que nem leram os comentários no post, nos quais já se apontavam indicações de que era uma pilhéria”.
6 de junho. A jovem mineira Laysa Peixoto anunciou, nas redes sociais, ser “oficialmente astronauta da turma de 2025” da NASA e que participaria de uma missão da empresa Titans Space em 2029. Assim como os demais casos, a publicação virou notícia em diversos veículos como, por exemplo, R7, Terra, CBN, IG, Gaúcha ZH e O Globo. Roberto Paiva, em texto publicado no LinkedIn, lembra que, desde 2022, sites jornalísticos começaram a reproduzir a narrativa de Laysa sem questionamentos. “O G1 foi um dos primeiros a publicar matérias celebrando a ‘jovem que descobriu asteroide e vai fazer curso da NASA’. A CNN Brasil seguiu a mesma linha, assim como outros grandes portais”.
No dia 11 de junho, o mesmo G1 resolveu investigar o caso e descobriu que a empresa privada não tem licença e que a NASA nega qualquer vínculo com a jovem. A partir daí, os veículos foram a reboque, chegando a se referir de maneira jocosa à jovem, que virou “uaistronauta” no Globo e “astronauta de Taubaté” na CNN. Neste artigo, a jornalista Patricia Gnipper foi certeira: “a imprensa brasileira criou uma astronauta da NASA. Depois se deu conta da besteira e fingiu demência, não fazendo o devido mea culpa e ainda surfando em cima da ‘revelação’ sobre a farsa”.
Erros técnicos ao corrigir os erros
Nos três casos, chama atenção uma prática ocorrida há pelo menos 10 anos. Em minha dissertação de mestrado defendida no PPGJor/UFSC em 2014, identifiquei que muitos veículos corrigiam informações publicando novas matérias (em novas URLs), o que faz com que o erro original permaneça acessível. Nos três casos, isso acontece. Uma simples busca no Google mostra matérias dizendo que Pablo Marçal encontrou Trump na posse, que Felipe Neto se lançou pré-candidato à presidência e que Laysa Peixoto será a primeira astronauta brasileira a ir ao espaço.
Outra falha é simplesmente atualizar a matéria, sem qualquer menção ao erro. Foi o que fez, por exemplo, O Globo, que mudou o título da notícia para “Quem é a mineira que disse que viajaria ao espaço, mas acabou desmentida pela Nasa”, no entanto, deixou rastros na nomeação da URL, que manteve o título original: “Quem é a mineira que vai ser tornar a primeira brasileira a viajar ao espaço”. Outro grave problema é que o resumo feito por Inteligência Artificial, visível logo após o título, não foi atualizado e permanece com a informação errada. A correção é feita sem cuidado e, o que é pior, sem mencionar que o texto anterior continha informações incorretas. Nem sinal da famosa errata, que continua tão rara.
Vale ainda chamar atenção para a complexidade da correção de erros quando se trata de informação divulgada por agência de notícias, que tem uma capacidade de espalhamento maior. Novamente uma rápida busca no Google mostra que a matéria divulgada pela Agência Estado – “Felipe Neto anuncia pré-candidatura à Presidência da República em 2026” – permanece acessível e sem qualquer menção ao erro em dezenas de sites jornalísticos.
Há duas exceções dignas de nota, embora sem admissão de suas falhas de verificação. O G1, que descobriu as informações falsas de Laysa Peixoto, corrigiu a matéria publicada em 2022, em que a jovem já dizia que iria participar de um treinamento para ser astronauta da NASA. Com isso, o G1 mostra que nunca é tarde para corrigir um erro. Também a Folha publicou um “Erramos” mencionando que a primeira versão da matéria disse, incorretamente, que o vídeo de Marçal havia sido feito na posse de Trump.
Erros éticos ao corrigir os erros
Para além da questão técnica, há um problema ético importante nos três casos: a imprensa “lavou as mãos” e se isentou de qualquer responsabilidade na publicação das informações erradas. A culpa é da fonte que mentiu nas redes sociais. A partir desse entendimento equivocado e conveniente, a hipocrisia não tem limites. Foi Pablo Marçal que voltou atrás e “admitiu” que o vídeo não foi gravado na posse de Trump. A pré-candidatura de Felipe Neto era só ação de marketing. A “astronauta fake” enganou a mídia para se promover.
Em um ecossistema informativo tão complexo como o atual, no qual as notícias produzidas pelo jornalismo que se autointitula “profissional” disputam espaço com todo tipo de fake news, me parece muito temerária a prática de replicar publicações de redes sociais sem qualquer verificação. Isso é justamente o que fazem os espalhadores de desinformação. Em todos os casos, faltaram procedimentos de checagem básicos, além de recusa na publicação de erratas precisas e objetivas.
Por mais que seja incômodo nesses momentos, o jornalismo, mesmo que indiretamente, se torna agente na cadeia de desinformação, o que pode ter consequências graves para a credibilidade das organizações.
Lívia de Souza Vieira – Professora da UFBA e pesquisadora associada do objETHOS
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