Por Pedro Carvalhaes, especial para o Viomundo
Há classes de crimes que, de tão graves e danosas para a coletividade, são punidas com especial rigor, em certos códigos penais.
Crimes de lesa-majestade, crimes de lesa-humanidade e crimes de lesa-pátria são exemplos delas.
Não faltam crimes cabíveis de serem imputados a Jair Messias Bolsonaro. Crimes graves, pelos quais ele está sendo julgado, e certamente será sentenciado.
Mas o crime de uma classe penal talvez jamais codificada foi recentemente cometido por ele, através do tarifaço trumpista contra o Brasil: o crime de lesa-burguesia.
Tal crime, na prática, é talvez o mais grave já cometido pelo “Capetão” — e olhem que ele, dizem alguns, passou em revista pelo Código Penal brasileiro.
(E, também, representou a última pá de cal sobre a triste figura desse triste indivíduo, atualmente desprezado não só por democratas, como por um número crescente de ex-bolsonaristas libertos do canto da seria do neofascismo tupiniquim.)
A gravidade desse delito se dá justamente pela ousadia do criminoso que, como uma criatura revoltada com o criador, voltou-se contra a força que permitiu sua ascensão: a burguesia brasileira.
Não é novidade que o chorume reacionário da ideologia bolsonarista teve o mesmo intuito de semelhantes discursos fascistas, ao longo da história: sequestrar pela emoção a cognição da sociedade, levando-a a eleger um governo que, na prática, viabiliza-se pelas mãos das classes dominantes, e em prol somente delas.
Assim como a eleição de Bolsonaro deveu-se aos desígnios da burguesia nacional, sua punição, em função da da insurreição frustrada de 2023, servirá a esses mesmos desígnios.
Afinal, embora tenha sido útil para o andar de cima, Bolsonaro, nos seus arroubos autoritários e iliberais, passou a flertar como uma independência que não cabia no jogo de cartas marcadas da democracia liberal — um jogo em que, não importa o vencedor das eleições, as batatas cabem à burguesia.
Um Bolsonaro “fora das quatro linhas” seria um risco grande demais para essa elite econômica que, de falcatrua em falcatrua, fez subir a rampa do Planalto o mais desqualificado dos políticos brasileiros.
Ao fazer o Império intervir diretamente nas capitanias hereditárias do Brasil, através do tarifaço trumpista, Bolsonaro lesou duplamente seus patronos nacionais.
Primeiramente, causando-lhes óbvio prejuízo econômico.
E, mais ainda, prejuízo moral.
Afinal, ao fazer a Casa Branca afrontar nossas instituições e a elite à qual servem, Bolsonaro humilhou nossa casa grande, demonstrando que ela não é tão organicamente norte-americana quanto se sente.
Usar Bolsonaro e jogá-lo fora, depois de ele perder a serventia, fazia parte do “script” dos nossos “donos do poder”.
Não seria interessante para eles matarem a galinha dos ovos de ouro — o Brasil, enquanto país. Bolsonaro, ainda presidente ou presidenciável, tornaria a nação perigosamente combalida, seja institucional, seja economicamente.
A elite nunca viu problema em parasitar o Brasil, mas se esse hospedeiro fosse destruído, não teria mais o que parasitar, obviamente.
Ao dobrar a aposta, tentando acossar via Trump essa elite e o sistema político que a sustenta, Bolsonaro cometeu um sacrilégio quase tão (ou talvez mais) imperdoável que a tentativa de golpe frustrada.
Quebrou uma cadeia hierárquica tácita, com uma insolência que o andar de cima não admite — e que nem Lula, no seu pragmatismo conciliador de classes, já ousara fazer.
Não que nossa elite faça objeções ao imperialismo e seus desmandos, como demonstra o golpe de 64.
O problema, no caso do tarifaço trumpista, foi que a intervenção não se deu através dela, e em prol dela, mas pelas mãos de um seu preposto, e para benefício próprio dele e de seu grupo.
Trancafiado numa cela, por muito tempo e com Justiça, o “Capetão” já seria.
Agora, periga ter sua imagem desmembrada, e o terreno sobre o qual semeou-a salgado, como um “Tiradentes torto”—- naturalmente, Bolsonaro está mais para Joaquim Silvério dos Reis, o traidor a quem se juntará, na latrina da história brasileira.
A não ser para seus seguidores mais fiéis, pelo menos enquanto persistir sua máquina de desinformação, Bolsonaro permanecerá relevante.
Mas é provável que até por esses seja esquecido, tão logo os afetos que os levaram a apoiá-lo sejam encarnados por outro personagem — certamente menos imprevisível e arredio.
Com o banditismo mais rasteiro e mafioso, Bolsonaro et caterva decidiram cair atirando, através da metralhadora tarifária de Donald Trump. Que não tenham, porém, a ingenuidade de esperar algum tipo de perdão ou reabilitação da burguesia brasileira.
No código penal tácito das democracias liberais, não existe anistia para crimes de lesa-burguesia.
*Pedro Carvalhaes, graduado em Direito pela UFMG, é roteirista.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.