O Arranjo do Desarranjo: As ameaças de Trump e as reações dos Brics
por Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back
“Like a bridge over troubled water” (Simon & Garfunkel)
O avesso, do avesso, do avesso. Há um clamor ou desejo nostálgico para um novo Bretton Woods, ainda mais nesses tempos turbulentos desatados sobre a moeda-reserva, o dólar. (Na posteridade da segunda guerra mundial, as mentes saudosistas clamavam por um retorno ao padrão-ouro)
Os desarranjos do sistema monetário internacional invocam a possibilidade de um novo Bretton Woods. Desta vez, acreditamos numa adaptação digital do Bancor.
A ideia de Keynes, vencida na reunião de Bretton Woods, pretendia criar uma moeda única para todos os países amparada em uma Câmara de Compensação única, a União Internacional de Compensação (UIC), cuja diretoria seria formada por representantes de todos os países.
O Bancor seria a moeda utilizada nas trocas entre os países aderentes ao sistema e o seu valor seria lastreado numa combinação de moedas mantidas pelos bancos centrais nacionais. Cada país receberia uma cota anual de ‘Bancores’ proporcional à sua participação no comércio mundial. Se a balança de pagamentos de alguém caísse para um déficit, seriam concedidos créditos para equilibrá-la. Se alguém acumulasse um excedente, os Bancores seriam deduzidos de sua quota.
“A proposta é complicada e nova, e talvez utópica no sentido de que não é impossível de pôr em prática, mas que pressupõe uma maior compreensão, espírito de inovação corajosa e cooperação e confiança internacionais do que é razoável supor”. (Keynes)
Na visão do Lord Maynard Keynes, o problema dos desequilíbrios entre as economias que redundaram em duas guerras mundiais, eram as guerras cambiais, as guerras comerciais, os desequilíbrios do balanço de pagamentos, e o financiamento precário dos países com moedas não conversíveis.
O Bancor sucumbiu à hegemonia americana, mas houve um acordo para administrar o sistema monetário internacional mediante a vinculação do dólar ao ouro. Essa decisão estabeleceu a paridade 35 dólares à onça-ouro.
Em 1971, diante dos desequilíbrios do balanço de pagamentos dos Estados Unidos, Richard Nixon promoveu a desvinculação do dólar ao ouro. A partir de então, já em 1973, é decretado um sistema taxas de câmbio flutuantes seguido, mas tarde, pela abertura das contas de capital. A determinação da taxa de câmbio de cada país está sujeita aos caprichos do fluxo de dinheiro que vagueiam pelo mundo na busca de retorno alavancado sobre o diferencial de taxas de juros, a conhecida arbitragem.
Os países de moedas não conversíveis foram submetidos ao comando do movimento de capitais que promovem a instabilidade das alternâncias entre valorizações e desvalorizações. Portanto, os países de moedas “fracas” não são soberanos para fixar sua taxa de juros.
Keynes percebeu, assim como outros economistas, que a taxa de câmbio define a taxa de juros, não o contrário. A taxa de câmbio define a relações de intercâmbio entre os países, determina os movimentos de preços nos emergentes e escancara as disparidades entre o valor da riqueza expresso na moeda nacional em relação à moeda estrangeira. Um caudal de opiniões dos especialistas desconsidera a determinação da taxa de juros interna pelas oscilações do câmbio flutuante.
Nas economias de moeda não conversível, como o real brasileiro e o peso argentino, a mobilidade de capitais tende a produzir valorizações indesejadas, seguidas de desvalorizações abruptas. Os regimes de taxa de câmbio flutuante não conseguem amenizar o baque e as autoridades monetárias do país de “moeda fraca” – com “ponto de compra” imprevisível – são tentadas a vender reservas ou subir as taxas de juro para estabilizar o curso do câmbio. Não funciona. Se as reservas são baixas diante de um passivo financeiro elevado em moeda estrangeira, tais medidas desesperadas acentuam a desconfiança na moeda local e aceleram a fuga de capitais.
Cabe a pergunta como administrar a taxa de câmbio sem controlar a conta de capital?
Quem aprendeu a lição foi a China, my friends! O Banco Central Chinês controla a entrada e saída de capital estrangeiro, não adota o regime de metas de inflação, e administra uma taxa de câmbio em relação ao dólar e euro, e, também, nas relações com os parceiros comerciais asiáticos. Controla as varáveis chaves na economia, a taxa de câmbio e a taxa de juros.
A China foi além, testou internamente uma espécie de yuan digital, a CBDC, Moeda Digital de Banco Central (e-CNY). Mais de 134 países estão desenvolvendo sua moeda CBDC, inclusive o Brasil com o Drex. Em 2021 foi lançado o mBridge, projeto de uma câmara de compensação entre as moedas dos países participantes para competir com o Swift (a plataforma de pagamentos em dólar).
Segundo o Banco de Compensação Internacional (BIS): o projeto mBridge faz experiências com pagamentos internacionais usando uma plataforma comum baseada na tecnologia de registro distribuído (DLT), na qual vários bancos centrais podem emitir e trocar suas respectivas moedas digitais emitidas pelos bancos centrais (multi-CBDCs). A proposta do mBridge é a construção de uma plataforma multi-CBDC, eficiente, de baixo custo, que possa fornecer uma rede de conectividade direta entre bancos centrais e participantes comerciais, aumentando significativamente o potencial para fluxos de comércio internacional e negócios transfronteiriços em geral.
Para testar essa proposta, um novo blockchain nativo – o livro-razão mBridge – foi projetado e desenvolvido por bancos centrais para bancos centrais, a fim de servir como uma implementação de plataforma especializada e flexível para pagamentos transfronteiriços em várias moedas.
Nasce a possibilidade de um novo arranjo monetário capitaneado pelos chineses, e talvez a realização do sonho de Keynes, usando o mBridge como forma de meio pagamento em várias moedas, tendo como âncora o (e-CNY). A vantagem da ideia original de Keynes, agora adaptado ao modelo chinês, permite aos países liquidarem suas trocas comerciais em moeda local.
Esse projeto pretende dar fim à Era de Desequilíbrios causados pelo regime de câmbio flutuante. Fim da volatilidade e da ociosidade do dinheiro. Se vingar, retornamos a um sistema de taxas de câmbio administradas E, mais importante, o déficit externo financiado pelas moedas locais.
“O capital-dinheiro está ocioso, e não apenas como música passiva e também como música do futuro, mas também como música ativa, como música do futuro”. (Marx)
Talvez a música volte a cantar:
“Like a bridge over troubled water”
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1985-1987) e de Ciência e Tecnologia de São Paulo (1988-1990). Belluzzo é formado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduado em Desenvolvimento Econômico pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) e doutor em economia pela Unicamp. Fundador da Facamp e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é autor dos livros “Os Antecedentes da Tormenta”, “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX”, e coautor de “Depois da Queda, Luta Pela Sobrevivência da Moeda Nacional”, entre outros. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. Em 2005, recebeu o Prêmio Intelectual do Ano (Prêmio Juca Pato).
Manfred Back – Economista PUC-SP, mestrado FGV-SP. Ex-Trader (BOVESPA), ex-gestor de carteira e fundo de ações. Professor de economia e mercado de capitais.
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