Em uma sociedade que preza pelo lucro acima da vida, propaga o individualismo, a ideia de meritocracia e de self-made man, e a qual considera todas as características humanas que não se adequam a perspectiva de produtividade excessiva e constante exigida pelo capital como debilidades, as pessoas que fogem dessas normas impostas são enxergadas como defeitos de fábrica e colocadas à margem, em condições precárias de vida.

Numa sociedade que se recusa a se adaptar às diferentes formas de existência humana – cada uma com suas particularidades e necessidades – o resultado será sempre o mesmo: a opressão, discriminação, a dificuldade extrema de se existir no mundo e de conviver com os demais. 

Isso leva pessoas LGBTQIA+, pessoas pretas, pardas, indígenas – por exemplo – a enfrentarem diversos desafios para entrar e, principalmente, para permanecer nas universidades. Entretanto, sem sombra de dúvidas, quando se é uma pessoa com deficiência (PCD), essas contradições entre as necessidades das classes populares e do capital atingem seu ápice. 

A falsa ideia da autossuficiência

Na sociedade capitalista, se faz extremamente comum a ideia de autossuficiência. A ideia de cada um por si, de um indivíduo que se sobrepõe ao coletivo, de que não é preciso depender do outro nem mesmo nas necessidades mais básicas. É comum que essas noções venham acompanhadas de discursos motivacionais tal qual livros e coachs de autoajuda propagam, como “você pode tudo, é só se esforçar, é só querer”. Novamente, tudo que não se encaixa a essa performance é encarado como um erro, uma limitação do indivíduo, jamais como um problema estrutural, coletivo, de ordem social.

No entanto, ao compararmos esses discursos e ideais vazios com a realidade como ela se dá, é gritante como a tal da autosuficiência é, na verdade, um conceito abstrato, solto no ar e ilusório, servindo somente aos interesses da classe burguesa de desmobilização dos demais setores do proletariado.

Veja bem, não estamos falando aqui exclusivamente das pessoas com deficiência. Ora, um indivíduo aprende a ler sozinho? Aprende a escrever sozinho? Aprende a andar, a se alimentar, a trabalhar sozinho? A realidade concreta demonstrada pela história de todas as civilizações é que, sozinhos, não conseguimos sequer nascer. Logo, a noção de autossuficiência tão propagada pela ideologia burguesa se demonstra tão frágil quanto uma porcelana, sem muita dificuldade. 

Não existe verdadeira autossuficiência. Dependemos uns dos outros constantemente e, logo, a solução para questões como o capacitismo jamais se darão de forma individual, mas somente coletiva. Esta questão, de forma dialética, vai do particular ao todo, e vice-versa. Do núcleo familiar à comunidade de bairro, da comunidade de bairro às instituições públicas, das instituições ao Estado burguês etc. Portanto, para falarmos de como é a vivência de pessoas com deficiência nas universidades públicas, ainda mais em Santa Catarina, é preciso ter noção de um todo – a sociedade capitalista – que afeta o particular – as universidades – e vice-versa. 

Em minha pesquisa para escrever o presente artigo, entrevistei pessoas surdas ou com perda auditiva, cegas ou com baixa visão, cadeirantes e neuro divergentes, tanto da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) quanto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Meu objetivo aqui foi de ter uma visão mais ampliada das questões de capacitismo nas universidades, assim como de servir na divulgação das lutas travadas nesses espaços.

Ação do Coletivo PCD da UFSC | Foto: Divulgação

As várias facetas do capacitismo

Um dos primeiros fatores a se estabelecer aqui é que a discriminação direcionada a pessoas com deficiência jamais atua isoladamente, assim como qualquer outra forma de opressão. O racismo, a lgbtfobia, o etarismo e o machismo não param de existir devido ao capacitismo, mas pelo contrário, atuam em conjunto com ele, assim desenvolvendo uma série de combinações diferentes referentes às opressões. Portanto, a discriminação que uma pessoa branca com deficiência sofre será inevitavelmente diferente do que a discriminação que uma pessoa preta com deficiência sofre, tendo camadas a mais ou a menos. 

Dentre o perfil das pessoas entrevistadas, se fez presente em maior quantidade indivíduos da população LGBTQIA+ e mulheres. Além disso, houveram algumas pessoas da terceira idade, que inclusive, não nasceram com sua deficiência, mas a desenvolveram com o tempo. De resto, a maioria se compôs por ou jovens adultos – saindo da adolescência ou não -, ou adultos por volta dos 30 anos. 

Se faz necessário pontuar essas particularidades para entender que não há nenhuma existência que seja igual a outra, por mais que possam pertencer a um mesmo grupo, categoria etc. Certas questões que se enquadram como capacitismo, a depender da deficiência e do perfil do indivíduo, podem acontecer ou não, ser mais ou menos intensas e constantes do que com outros. É evidente que, de qualquer forma, é discriminação e deve ser combatido, pois essas diferentes formas de opressão, no final, se interligam, se retroalimentam e se expandem.  

Entrar e permanecer

As dificuldades, como já é de se imaginar, começam desde o vestibular. Ao perguntar para os entrevistados sobre o processo de admissão em suas universidades, foi quase unânime as respostas de como este é extremamente burocrático e pouco inclusivo, isso é, quando ao menos há uma tentativa de inclusão.

Mariana Solano, uma das únicas estudantes surdas de graduação de todo o Campus 1 da UDESC, ao ingressar em 2023, disse que “com a ausência da cota para pessoas com deficiência, me inscrevi no vestibular pela ampla concorrência”. Já Maria Thompson, aluna com baixa visão, enfrentou dificuldades na matrícula porque não havia espaço para sinalizar sua condição. No primeiro dia, a secretaria e o Núcleo de Acessibilidade Estudantil (NAE) foram pegos de surpresa por não terem sido informados da existência dela, o que atrasou a garantia de acessibilidade. Durante semanas, ela teve que explicar sua condição individualmente, lidando com o despreparo da instituição e dos docentes. Por mais que o NAE faça um bom trabalho, há um grande problema na acessibilidade de informação e falta de comunicação por parte dos demais departamentos de curso para direcionar os estudantes PCDs.

Enquanto isso, Sidnei Júnior, um dos poucos estudantes cadeirantes da UDESC, após um semestre em Serviço Social na UFSC, voltou ao curso por meio da seleção via histórico escolar, o que facilitou sua entrada. No entanto, a universidade não sabia de sua condição. O contato com o NAE só aconteceu graças à ajuda de uma veterana também PCD. A coordenadora ficou surpresa e houve demora na contratação da cuidadora, o que dificultou o início. Com o tempo, a situação se estabilizou.

Débora Marques Gomes, mulher cega, não estudante, mas servidora da UDESC, relatou sua entrada na universidade por vaga reservada para pessoas com deficiência após ser aprovada em concurso, mas enfrentou dificuldades desde o início. A instituição não sabia como alocar alguém com deficiência, priorizando sua condição em vez de suas habilidades, apesar de sua formação em Psicologia e experiência em Recursos Humanos. Ela mesma buscou um setor onde pudesse atuar, sendo acolhida no Laboratório de Educação Inclusiva (LEDI) – espaço de pesquisa e extensão da universidade – por uma professora conhecida. Mesmo assim, levou três anos para ser instalado um piso tátil de acessibilidade, refletindo o despreparo estrutural e institucional da universidade.

No entanto, os desafios não se limitam à universidade estadual, também se fazem muito presentes na federal. O Coletivo PCD, recentemente criado na UFSC, denuncia o processo de ingresso à universidade, assinalando-o como altamente burocratizado, pois há a recusa de adaptar o vestibular de acordo com as necessidades e condições de pessoas com deficiência – as quais enfrentam questões de sobrecarga sensorial, por exemplo -, sem falar no estresse de conseguir um laudo de diagnóstico para provar sua deficiência, laudo esse que deve ser renovado e apresentado todos os anos – como se as deficiências das pessoas fossem magicamente sumir de um ano para outro. 

Sobre o pós ingressar na universidade, ao perguntar aos entrevistados sobre sentirem-se acolhidos dentro desses espaços, responderam quase unanimemente um categórico “sim e não”. Na UDESC, entrevistados relatam que a universidade em seu conjunto não é acolhedora. Contudo, dizem ter encontrado acolhimento em pequenos grupos e setores, por meio de amizades com professores, servidores ou estudantes, e programas como o NAE e o Setor de Tradução e Interpretação de Libras.

Na UFSC, entrevistados se indignam pela extrema carência de intérpretes, casos de professores sendo capacitistas e desinteressados em adaptar as aulas, forçando alunos surdos a transcreverem áudios dos docentes, ou até a abandonarem os cursos. Foi registrado também a falta de suporte para alunos com crises sensoriais, as várias calçadas esburacadas – dificultando a locomoção de pessoas cegas ou com baixa visão -, o despreparo do Restaurante Universitário para receber pessoas neuro divergentes e a falta de informação por parte dos centros para indicar as pessoas até o Coordenadoria de Acessibilidade Educacional (CAE).

O anticapacitismo em abstrato

A imensa maioria das instituições burguesas, nos dias de hoje, se deleitam das mais belas palavras para se posicionarem contra todo o tipo de discriminação, inclusive contra o capacitismo. Como bem diria Lênin, “contentam-se com palavras bonitas, com frases pomposas, com promessas sonoras”. Vejamos se elas se sustentam na prática.

Mariana comenta que tanto sofreu quanto presenciou o capacitism: “Pode acontecer em sala de aula, no corredor e em grupo de WhatsApp, não existem limites para o capacitismo contanto que a pessoa esteja confortável no ambiente para o fazer.”

Na UDESC, se relata como o capacitismo vem principalmente de estudantes. Uma das entrevistadas afirma que a chamaram de fresca e mentirosa por cobrar acessibilidade, que foi humilhada por pedir isso em uma aula de dança. Também é relatado que muitos colegas, os quais levantam a bandeira com tanto fervor em rodas de conversa, falam absurdos de estudantes com deficiência pelas costas. 

Amálgama, pessoa neuro divergente, diz em seu depoimento: “desde situações mais cotidianas, como rirem de mim por usar fone o tempo todo ou fazerem piada com os movimentos que faço para me autorregular, até comentários dizendo que eu ‘preciso trabalhar meu emocional’ porque sou ‘uma pessoa descontrolada’”.

A servidora Débora relata que a UDESC, assim como a sociedade em geral, é estruturalmente capacitista. Apesar dos esforços por mudanças, ainda há muitos desafios. Ela mesma já sofreu capacitismo, inclusive de colegas professores, que defenderam tratar pessoas com deficiência como se não fossem adultas, negando sua autonomia. Ela defende que pessoas com deficiência têm direito de fazer suas próprias escolhas e ocupar espaços com dignidade. Destaca que sua presença como mulher cega na universidade força mudanças, mesmo que lentas. Acredita que a instituição precisa se adaptar à realidade e garantir os direitos dos estudantes com deficiência, e que seu papel como coordenadora é mediar esse processo, mesmo enfrentando limitações. 

Por outro lado, há uma pessoa que alega que não sofreu ofensas explícitas ou bullying, mas acredita que foi tratada de forma mais dura por fazer parte de várias minorias. Embora os comentários não tenham sido diretamente capacitistas, ela sente que foram influenciados por um capacitismo estrutural presente na sociedade. Ela não culpa diretamente as pessoas, mas sim a estrutura social capacitista.

Na UFSC, não há grandes diferenças. Como já dito, há poucos intérpretes de Libras para pessoas surdas, o que faz elas muitas vezes terem de recorrer a legendas ou transcrições em sala de aula. Uma entrevistada relatou a recusa de sua professora de colocar legenda para que ela pudesse entender um vídeo que estava passando. Felizmente, esse caso foi denunciado e resolvido. Ao contrário, porém, de outro ocorrido de um professor sendo capacitista com um estudante neuro divergente, fazendo-o desistir da disciplina. O mesmo aluno relata como a discriminação sofrida cotidianamente na universidade intensifica a depressão, a ansiedade e até afeta suas notas. As denúncias, de acordo com os entrevistados, são ineficientes e raramente resolvem os problemas.

Contudo, Maria Thompson fala de como, depois que ela entrou na UDESC, matérias sobre acessibilidade e inclusão foram criadas em seu curso, uma licenciatura. Amálgama afirma que em termos de acessibilidade há melhorias nos últimos tempos, mas a passos bem curtos. Agora existem cotas para pessoas com deficiência e ele vê mais pessoas com deficiência e neuro divergentes circulando na universidade. Débora, por sua vez, acredita que sua presença na universidade provocou mudanças importantes, mesmo que ainda discretas, como tirar pessoas da zona de conforto e gerar reflexões sobre capacitismo. No entanto, reconhece que essas transformações ainda não se consolidaram em políticas institucionais. Ela defende que o caminho para uma universidade realmente inclusiva e anticapacitista passa pelo reconhecimento dos próprios preconceitos e pela disposição em mudar. Para ela, ninguém nasce sabendo tudo, e até mesmo pessoas bem-intencionadas podem reproduzir atitudes capacitistas devido à cultura social. O importante é estar aberto ao aprendizado e à transformação contínua.

O que fazer?

É importante darmos a devida atenção às problemáticas expostas, assim como também para os pequenos avanços dos últimos anos. Entretanto, apenas analisar, não basta.

Para pôr um fim a este artigo – com um tópico, porém, ainda longe de se esgotar -, deixo aqui políticas anticapacitistas propostas pelos próprios entrevistados, muitas delas que não estão plenamente formuladas, mas que já servem muito bem como um começo de discussão para encarar o capacitismo como um problema não apenas das pessoas com deficiência, mas da sociedade capitalista como um todo. Um problema com várias particularidades próprias, sem deixar de ser um problema de classe.

Mariana propôs que houvesse mais acessibilidade na realização da matrícula para com as informações necessárias para garantir seus direitos no ambiente acadêmico, assim como maior conscientização do papel do Setor de Tradução e Interpretação de Libras. 

Maria propôs cursos e rodas de conversa sobre acessibilidade e inclusão para toda a UDESC, principalmente para estudantes. 

Débora fala da necessidade de incluir as pessoas com deficiência no processo de criação de soluções acessíveis para garantir sua efetividade.

Amálgama alega ser preciso capacitar os servidores e toda a comunidade universitária sobre as diferentes deficiências que existem. Conhecer, entender como tornar o espaço mais acolhedor e acessível, sem aquele olhar de pena. Melhorar a rampa do Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED), que não tem a inclinação correta conforme a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), e colocar mais de uma cabine acessível nos banheiros. 

Por último, estudantes do Coletivo PCD da UFSC colocaram as seguintes reivindicações: 

— Utilizar-se da Lei Brasileira de Inclusão a nosso favor para pressionar universidades;
Intensificar o debate com palestras e seminários, convidando pessoas com deficiência para falar sobre tópicos não necessariamente ligados aos seus sofrimentos;
Combater os cortes orçamentários na educação feitos pelo Governo Lula, pois apenas com mais investimentos no ensino público podemos melhorar a infraestrutura e contratar mais intérpretes de Libras – por mais verbas e divulgação da causa!
— Adaptação do material didático para os diversos tipos de deficiência;
— Que o Restaurante Universitário entregue marmitas para que pessoas autistas, por exemplo, possam comer em lugares longe de sobrecarga sensorial;
— Maior manutenção dos prédios e conserto de elevadores quebrados para que pessoas cadeirantes possam se locomover;
— Promover a criação de ambientes próprios para regulação de pessoas neuro divergentes, principalmente em momentos de crises.

É preciso se revoltar, se mobilizar, ir às ruas e defender um programa político que ligue as pautas de pessoas com deficiência à luta da classe trabalhadora, em conjunto à luta pelo socialismo!

A revolução, ela virá, e será defiça e neuro diversa! Por um mundo sem opressões!

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Last Update: 13/07/2025