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BRICS, paz e segurança internacional: análise de posicionamento conjunto na Cúpula do Rio de Janeiro
por Emilio Mendonça Dias
Este artigo é fruto da observação e da perspectiva do autor. Faz análise de questões documentalmente disponíveis, sim, mas é essencialmente resultado da experiência que tive nos dias de agenda cheia no contexto da cúpula dos BRICS, a partir do que me permito lançar mão de alguns comentários de caráter opinativo, ao lado dos pontos descritivos. Falarei sobre a abordagem dada às questões de paz e segurança internacional pelos países do BRICS, além de tratar da pertinência ou desejabilidade de posicionamentos do presidente brasileiro e daquele realizado pelo BRICS como grupo, como expressos na declaração.
Como era de se esperar, um dos campos de maior complexidade, debatido na reunião de cúpula dos BRICS havida na cidade do Rio de Janeiro, nos dias 6 e 7 de julho, diz respeito às principais questões envolvendo os temas da paz e segurança internacional nas relações internacionais. Para os BRICS, a atividade não é nova, à vista de que suas reuniões serviram para pronunciamento de visão conjunta acerca de questões atuais de geopolítica, o que se passou desde a formação do grupo. Assim foi, por exemplo, com a visão expressa sobre a situação da Síria, Israel e Irã, na pauta nuclear, na cúpula de 2012. Também foi o caso do endosso dado pelo BRICS sobre a solução dos dois Estados para a questão Palestina, o que se verificou em 2015.
O apelo para a reforma da ONU de modo que absorva o multilateralismo – o que devemos ter como incluindo Conselho de Segurança, embora a menção não tenha ficado expressa – constou da declaração conjunta desde a primeira reunião de cúpula entre chefes de Estado da qual resultou uma declaração, em 2009. Timidamente, os países do então BRICs manifestaram a importância do status do Brasil e da Índia nos assuntos internacionais e declararam compreender suas aspirações para que desempenhem papel de maior relevância na ONU.
É necessário, porém, considerar que esta cúpula teve contornos diferentes para a temática, desta vez. O processo de expansão do BRICS fez com que país diretamente atacado por potências ocidentais seja de membro permanente do grupo, como é o caso do Irã. Além disso, há um contexto geral de aumento das tensões nas relações internacionais, o que fez do tema especialmente delicado para o momento. Sua premência, com isso, ficou caracterizada por ser o primeiro assunto discutido no Rio de Janeiro.
Adverte-se o leitor, além disso, que a impressão geral daqueles dias era de um clima mais tenso do que geralmente se vê nas reuniões do BRICS. De fato, o que se coloca com pesar, hoje estamos submetidos a um mundo mais perigoso do que aqueles que marcaram os anos iniciais de formação do grupo.
A visão conjunta do BRICS sobre os conflitos em curso obedece uma atitude que lhe é tradicional: prefere-se a moderação do discurso nessa temática. Isso por que o grupo não foi formado pretendendo exercer conjuntamente o confronto, ao contrário do que as pessoas eventualmente pensam. Desde o princípio, pretenderam os BRICS exercer influência conjunta sobre a governança global para favorecer a diversidade e representatividade. Nunca tiveram os BRICS o desejo, explícito ou implícito, de fazer colapsar a arquitetura da governança global estabelecida, senão dela melhor participar.
Isso explica o fato de os BRICS, o que se observou também desta vez, preferirem uma linguagem bastante mais dirigida a manifestar preocupação com as situações e discursar em favor de que as providências sejam tomadas em foros multilaterais e de modo representativo.
Nas linhas seguintes, farei análise comentada tanto de discurso individual do presidente brasileiro como os termos da declaração conjunta dos países dos BRICS. Chamo especial atenção para o genocídio do povo palestino, por Israel, e para o ataque armado ao Irã, perpetrado por Israel e pelos Estados Unidos, por entendê-los como elementares para a discussão da política internacional atual.
BRICS e a visão sobre o contexto internacional que importa para paz e segurança internacional na cúpula do Rio de Janeiro
Na reunião de cúpula do Rio, o pronunciamento de visão sobre conflitos em curso, no mundo, foi objeto de discurso inicial do presidente Lula. A singularidade do contexto presente foi colocada, ao dizer ser a quarta presidência brasileira no BRICS que, porém, de todas, é a que se dá no “cenário global mais adverso”, em que “o direito internacional se tornou letra morta, juntamente com a solução pacífica das controvérsias”, já que “nos defrontamos com número inédito de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial” e sob o apontamento de que a “OTAN alimenta a corrida armamentista”, observando também que a destinação desigual de recursos para fins armamentistas, em comparação com os recursos alocados para Agenda Oficial ao Desenvolvimento, faz com que seja “sempre mais fácil investir na guerra do que na paz”.
Sobre contextos conflitivos específicos, o presidente repudiou os atentados na Caxemira e, especialmente sobre a Israel e o genocídio do povo palestino, fez as seguintes considerações: “absolutamente nada justifica as ações terroristas perpetradas pelo Hamas”; “mas não podemos permanecer indiferentes ao genocídio praticado por Israel em Gaza e a matança indiscriminada de civis inocentes e uso da fome como arma de guerra”. Com firmeza, terminou a questão afirmando que “a solução desse conflito só será possível com o fim da ocupação israelense e com o estabelecimento de um Estado palestino soberano, dentro das fronteiras de 1967”. Ademais, com colocação que importa ao ataque ao Irã, pontuou o presidente que “sem amparo no direito internacional, o fracasso das ações no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria tende a se repetir de forma ainda mais grave”.
Seu discurso segue tendência recorrentemente verificada que é, ao falar da questão Palestina, procurar um viés ponderado preste reverência aos “dois lados da questão”. Condena-se o ataque de outubro de 2023, pelo Hamas, e somente a seguir se trata dos ataques de Israel.
Por um lado, digo, há algo de bom nisso: é interessante que fique consignado que não existe nenhum interesse específico em atos de violência da parte daqueles que têm feito oposição à truculência a desumanidade do genocídio do povo palestino.
Por outro lado, já não tanto. Primeiramente, existe circunstância histórica, absolutamente negligenciada pela mídia e por formadores de opinião, por trás do ataque efetuado pelo Hamas, naquele infeliz dia de outubro de 2023. O povo palestino vem há décadas sofrendo com opressão que, ao deteriorar as relações sociais, faz palco propício para ações armadas e indesejadas, diga-se. Vale a pena, ao falar sobre a questão, recuperar o histórico. No entanto, é lógico que não há espaço para, em um discurso oficial inaugural da reunião do BRICS, fazê-lo com a atenção que a abordagem merece.
O problema é que o ponto de vista, pretensamente ponderado, que segue a linha dos “dois lados da questão” pouco tem de esclarecedor. Pelo contrário, gera nas pessoas uma certa sensação de que há algo de legítimo na postura de Israel, sobretudo quando se emprega a gasta moeda do ocidente que é denominar de “terrorista” toda e qualquer ação violenta que a ele não interesse, excetuadas logicamente as muitas por ele praticada. Se não há espaço para resgatar todo o histórico da questão da Palestina, bastava-nos saber que o atentado de outubro de 2023 já aconteceu há quase dois anos e que não há razão alguma para se entender que o assassinato diário de mulheres e crianças tenha qualquer sentido de “defesa”. Já podemos nos opor a um genocídio dispensando os “poréns”!
Além disso, em um mundo com forte carga de tensões, no qual o ocidente adota postura segundo a qual “quem não estiver conosco, está contra nós”, acaba por tornar pouco efetiva a estratégia de procurar agradar a todos, mais propensa, inclusive, a se converter em medida de desagradar a todos. As tarifas anunciadas pelos Estados Unidos, tendo o Brasil como alvo, logo após a realização da reunião do BRICS, falam por si: as relações globais se converteram em sistemas onde o mínimo desvio dos interesses ocidentais já não é tolerado.
De toda forma, fez bem o presidente ao se posicionar, de maneira firme, sobre a questão da Palestina, por situar o Brasil ao “lado certo da história”.
Interessantemente, os BRICS apresentaram, agora tratando de sua manifestação conjunta, elementos estruturais sobre a questão Palestina, de toda a importância para a definitiva e duradoura relação de paz com os israelenses. O posicionamento constou em quatro parágrafos da declaração, que se juntou a outros tantos sobre o Oriente Médio no geral, demonstrando a importância central do tema.
O grupo demonstrou preocupação com Gaza, em virtude dos ataques de Israel e da obstrução da entrada de ajuda humanitária; pediram respeito ao direito internacional humanitário e aos direitos humanos e se opuseram à instrumentação da fome como arma de guerra; clamaram por cessar-fogo e imediata retirada das forças israelenses da Faixa de Gaza e de todo o território palestino; rogaram por liberação de reféns; manifestaram apoio ao trabalho da UNRWA – Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos no Oriente Médio – e defenderam sua legitimidade para a prestação de serviços básicos; e lembraram as medidas cautelares tomadas pela Corte Internacional de Justiça, cuja ação foi de proposição de um de seus membros – a África do Sul.
O posicionamento não parou por aí: os BRICS declararam que a Faixa de Gaza é parte do território palestino e defenderam a unificação da Cisjordânia e Faixa de Gaza sob o comando da Autoridade Palestina, como condição para a afirmação inequívoca de sua autodeterminação e seu direito a contar com um Estado verdadeiramente independente, dando por legítimas e necessárias as providências para a independência daquele povo. Além disso, clamaram por rápida reconstrução de infraestrutura, a se realizar sob mãos dos palestinos de forma centralizada. Por fim, advogaram pela plena adesão da Palestina às Nações Unidas.
A abordagem dos BRICS sobre a Palestina não poderia ser mais feliz. Como se sabe, dado o histórico de ocupações irregulares por Israel, deslocamentos forçados e tomada de território, não há solução que se baste na cessação de hostilidades. Mesmo a solução dos “dois Estados” torna-se inócua caso não se trate dos elementos estruturais que possibilitem a formação completa de um Estado palestino, como é o caso do direito afirmado sobre o território, a unificar-se por vias de desfazimento de sua separação em áreas isoladas e que resultou das medidas coloniais de Israel.
Com isso, ficam os BRICS em sintonia com as Nações Unidas, bastante mais fiéis aos princípios do direito internacional do que aqueles que têm tentado substituir a norma internacional pelo uso unilateral e arbitrário da força.
Sobre o ataque dirigido ao Irã, também corretamente, os BRICS enfatizaram sua ilegalidade e o condenaram.
Já sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, além de terem condenado os ataques perpetrados contra pontes e linhas ferroviárias na Rússia, os BRICS consideraram bem-vindas as propostas de mediação e bons ofícios – ambos se tratando de métodos pacíficos de solução de controvérsias no direito internacional público. Ocorre, aqui, que muitas foram as ofertas para mediação ou favorecimento do diálogo entre a Rússia e a Ucrânia, e ambos os países não se mostraram abertos à função. Em um de seus grupos formalmente estabelecidos – o Conselho Popular dos BRICS –, em sua manifestação que precedeu em dias a cúpula e que é formado por organizações da sociedade civil, houve apelo para que o grupo sirva de plataforma para soluções pacíficas de controvérsias. É preciso, para isso, que o BRICS sejam mais persuasivos para conduzir as partes ao diálogo.
BRICS e Reforma do Conselho de Segurança
O tema da reforma do Conselho de Segurança, bastante visitado no ambiente dos BRICS, foi alvo de observação do presidente Lula em seu discurso inaugural, com a seguinte colocação: “as reuniões do Conselho de Segurança reproduzem um enredo cujo desfecho todos conhecemos: perda de credibilidade e paralisia”. A afirmação é acompanhada da constatação de que “ultimamente sequer é consultado antes do início de ações bélicas”.
As frases, talvez, expressam sentimento comum aos brasileiros. Como podemos achar que o Conselho de Segurança, com sua atual configuração e definições jurídicas, é a força que coíbe os países de recorrerem às ações militares se frequentemente as vimos serem praticadas unilateralmente e independentemente do órgão, sob a desarrazoada alcunha de “defesa preventiva”?
Na declaração do Rio, a questão foi endereçada da seguinte forma: disseram os BRICS que estão dispostos a dar o suporte necessário para que a Organização das Nações Unidas cumpra seu mandato. Pediram reforma de seus principais órgãos e, especificamente sobre o CSNU, prometeram dar novo impulso às discussões sobre sua reforma.
O tema foi colocado de forma sobremaneira tímida, mesmo se comparada a outras declarações dos países dos BRICS. Na declaração de Kazan, do ano passado, a reforma do Conselho de Segurança da ONU constou da seguinte forma:
Reconhecendo a II Declaração de Joanesburgo, de 2023, nós reafirmamos nosso apoio para uma reforma ampla das Nações Unidas, incluindo o Conselho de Segurança, com o propósito de torná-lo mais democrático, representativo, efetivo e eficiente, e aumentar a representação de países em desenvolvimento entre os membros do Conselho para que se possa adequadamente responder aos desafios dominantes e apoiar aspirações legítimas de países em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo os países dos BRICS, para que desempenhem maior papel nos assuntos internacionais, em particular nas Nações Unidas, incluindo o Conselho de Segurança (…)
A declaração de Kazan, assim, empregara os exatos termos de sua antecessora, em Joanesburgo.
Como interpretar uma clara retração na defesa de reforma do Conselho de Segurança, por ter a declaração do Rio apenas prometido que a questão seguirá sendo tratada, senão como efeito de um mundo mais desconfiado pelo aumento de focos de conflito armado no campo internacional?
Para o ponto, o que nos resta é esperar que ano que vem, na Índia, os BRICS recuperem os termos mais incisivos.
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