Em meio a uma conjuntura geopolítica cada vez mais tensionada, marcada pela ascensão de um novo modelo de dominação digital, especialistas brasileiros apontam que o país vive uma grave situação de dependência tecnológica em relação às grandes empresas de tecnologia — as chamadas Big Techs — e aos Estados Unidos.
A análise foi feita durante o programas TVGGN Justiça da última sexta-feira (11). “Se antes o poder dos EUA se impunha pelas armas e pelo mercado financeiro, agora ele opera pela digitalização, pelas plataformas e pelo controle de dados”, afirmou o apresentador Luís Nassif.
O jornalista fez referência direta à influência de Donald Trump e sua articulação com figuras como Steve Bannon, sugerindo que a ingerência sobre o Brasil vai além de questões ideológicas, sendo também uma forma de frear iniciativas locais de regulamentação das plataformas.
Isabela Rocha, mestre em Ciência Política e integrante da equipe que desenvolve a plataforma piauiense de inteligência artificial SoberanIA, apresentou dados alarmantes de um estudo recém-divulgado por universidades brasileiras e o Fórum para Tecnologia Estratégica dos Brics.
Segundo a pesquisa, a máquina pública brasileira destinou R$ 23 bilhões às Big Techs, como Microsoft, Google e Amazon, nos últimos anos.
Desse total, R$ 10 bilhões foram gastos apenas entre junho de 2023 e junho de 2024, valor que, segundo Isabela, poderia ter sido usado para pagar bolsas de pós-graduação a todos os estudantes do país ou construir 86 data centers de alto padrão (Tier 3), impulsionando a infraestrutura tecnológica nacional. “Esse dinheiro está sendo enviado para o exterior, aprofundando nossa dependência e fortalecendo bilionários estrangeiros”, criticou.
A pesquisadora também apontou que a tentativa brasileira de regular as plataformas digitais tem gerado reações internacionais, incluindo as recentes taxações de 50% sobre produtos brasileiros anunciadas pelo governo Trump, que, na avaliação dela, representam retaliações políticas disfarçadas de medidas econômicas.
Software livre
O sociólogo Sérgio Amadeu, professor da UFABC e um dos principais articuladores do movimento de software livre no Brasil, relembrou os avanços conquistados entre 2003 e 2006, quando coordenou o Comitê de Implementação de Software Livre no Governo Federal. Ele destacou que, apesar das conquistas técnicas e de adesão de gestores públicos, faltou apoio político mais amplo para consolidar a estratégia.
Amadeu denunciou o lobby das multinacionais, como Microsoft e Oracle, dentro do Judiciário e de instituições federais, o que teria travado projetos de informatização baseados em tecnologias abertas.
“O Brasil sofre de uma alienação técnica. Ainda existe uma visão ultrapassada de que tecnologia é só meio, quando, na verdade, é também um fim — é infraestrutura estratégica para o país”, afirmou.
Segundo ele, o Brasil perdeu oportunidades de desenvolver soluções autônomas, e hoje 45% dos custos de projetos de inteligência artificial em universidades são destinados à infraestrutura de hospedagem — quase sempre em serviços de nuvem das Big Techs. “Só em 2024, o déficit na balança de serviços em telecomunicações e computação foi de US$ 7,2 bilhões, mais de R$ 35 bilhões em saída de divisas.”
Judiciário
O advogado André Matheus, vice-presidente da Comissão Especial de Combate ao Lawfare da OAB-RJ, analisou a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que flexibiliza a exigência de ordem judicial para a remoção de conteúdos digitais que incitem crimes como terrorismo, racismo ou ataques à democracia.
Ele destacou que o STF considerou parcialmente constitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet e classificou a decisão como pioneira e de grande impacto internacional.
“A partir de agora, plataformas podem ser obrigadas a remover conteúdos nocivos sem ordem judicial. Isso coloca o Brasil como referência global, o que desperta reações das Big Techs, preocupadas com o efeito dominó dessa jurisprudência”, explicou.
Na avaliação de Matheus, a taxação imposta pelos EUA seria uma resposta velada à ofensiva brasileira contra o poder das plataformas, utilizando instrumentos econômicos como forma de pressão geopolítica. “É uma nova forma de guerra — não com armas, mas com tarifas, lobbies e sabotagens digitais”, concluiu.
Apesar dos desafios, iniciativas locais apontam caminhos possíveis para a construção de uma soberania digital brasileira. Um exemplo destacado na entrevista foi o projeto SoberanIA, do governo do Piauí, a primeira plataforma de inteligência artificial criada pelo poder público estadual no Brasil.
Isabela Rocha, que colaborou com a concepção do projeto, relatou como o Estado buscou construir um sistema baseado em dados locais, evitando a dependência de plataformas estrangeiras. “A ideia surgiu a partir de oficinas que ministrei sobre uso ético de IA. O foco era mostrar que não é a tecnologia que está errada, mas a forma como ela é usada e para quem ela serve”, explicou.
A plataforma foi desenhada para auxiliar processos internos do governo, com base em dados públicos piauiense e programação em servidores próprios. Embora ainda restrita ao uso institucional, a expectativa é que o modelo possa ser expandido para outros estados e, futuramente, adaptado para uso mais amplo pela população.
Como conclusão, os entrevistados do programa afirmaram que a saída para o país passa por investimento em infraestrutura própria, políticas públicas robustas, regulação das plataformas e uma profunda mudança de mentalidade no setor público.
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