Como se aprende na escola, a Inconfidência ou Conjuração Mineira (1789) foi um movimento organizado por setores médios descontentes com o domínio português e que tinha por objetivo libertar Minas Gerais e torná-la uma república independente. Um de seus líderes foi o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Os inconfidentes foram delatados por Silvério dos Reis, ao preço vil do perdão de suas dívidas com a corte.
Brutalmente assassinado por assumir seu papel na conjuração e não renegar seus ideais, Tiradentes virou um mártir a inspirar os verdadeiros patriotas até hoje. Já seu delator se tornou símbolo da abjeta e desprezível traição à Pátria.
Prega o adágio político que, desde então, vigora a divisão mais antiga e estrutural da sociedade brasileira: a oposição entre o partido de Tiradentes e o de Silvério dos Reis – ou seja, aqueles que almejam um Brasil independente e soberano versus aqueles que o querem rendido e subalterno aos interesses de potências estrangeiras.
Nada poderia ser mais verdadeiro e atual do que essa clivagem no episódio do tarifaço de 50% a produtos brasileiros anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, como forma de beneficiar e atender interesses políticos e pessoais de seu aliado Jair Bolsonaro, que deve ser preso em breve pela tentativa de golpe de Estado de 8 de Janeiro.
Afinal, o ataque direto à soberania nacional, via retaliação econômica, foi orquestrado diretamente dos EUA pelo deputado Eduardo Bolsonaro, prócer da extrema-direita e filho do ex-presidente.
É claro que não se ignora os verdadeiros interesses que motivam Trump, como conter o avanço da China e estremecer a aliança entre os Brics, para o que se torna decisivo incidir no processo eleitoral brasileiro de 2026 em apoio ao bolsonarismo. Um Brasil servil ao governo estadunidense é parte necessária dos planos imperiais do norte-americano, que vê a hegemonia de seu país em declínio e desafiada.
A história se repete como farsa: agentes políticos brasileiros trabalham em conluio com forças estrangeiras para sabotar os interesses do próprio País. A sanha antipatriótica bolsonarista, por óbvio, não se importa em saber que o povo trabalhador pagará a conta – o custo Bolsonaro – através de empregos perdidos e encarecimento de produtos. Também não se preocupa com a indústria e o agronegócio brasileiros, que serão atingidos em cheio com a imposição de tarifas, o que tende a inviabilizar as exportações.
Ironia do destino, acredite se quiser, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados aprovou, poucas horas antes do anúncio das sanções, uma moção de louvor a Trump, por requerimento do líder do partido de Bolsonaro. Os lambe-botas homenageiam o presidente que pratica contra o Brasil o mais ofensivo ato de hostilidade para tempos de paz – a paz possível nesses tempos sombrios.
Entretanto, ensina a física que para toda ação existe uma reação em sentido contrário. Por incrível que pareça, o ataque covarde de Trump/Bolsonaro pode representar uma oportunidade para o presidente Lula reorganizar o jogo político do País e se fortalecer para a disputa de 2026. Explico.
Em primeiro lugar, a agressão inédita e inesperada despertou um sentido de solidariedade e autoproteção nas forças econômicas e sociais, o que pode ajudar o governo a diminuir o isolamento político. Um exemplo até surpreendente foi o editorial lapidar escrito pelo jornal O Estado de S. Paulo, adversário indiscutível de Lula, que teceu duras críticas ao norte-americano, a Bolsonaro e até mesmo ao governador Tarcísio de Freitas, que se rasga em elogios a Trump e agora terá de prestar contas do vacilo à Fiesp e aos desempregados da crise.
Romper o isolamento político, recompor as principais bases eleitorais de Lula (os mais pobres e o Nordeste), reaglutinar a base congressual e alargar a aliança para 2026 são objetivos estratégicos da disputa e, aparentemente, podem ter ficado mais viáveis após o tarifaço.
Além disso, outro fator que estava amortecido ganha novo fôlego: a mobilização social. Tudo indica que as pautas de taxação dos super ricos, isenção de imposto para quem ganha até 5 mil reais e pelo fim da jornada 6 X 1 têm poder de tração para reanimar a militância e levar as camadas progressistas às ruas em apoio ao governo.
Por fim, o tarifaço é mais um evento bombástico a demonstrar o quão obsoleta e anacrônica no mundo de hoje é a agenda ortodoxa e fiscalista na economia. Lula tem a oportunidade de apresentar propostas que subvertam a lógica neoliberal e atendam aos interesses das camadas populares e da indústria nacional.
Na batalha eterna entre o partido de Tiradentes contra o de Silvério dos Reis, o povo brasileiro reservou a glória ao primeiro e o desprezo ao segundo. Não será diferente desta vez.