Da falta à função do desejo autoritário
por Eliseu Raphael Venturi
Há algo de insuportável no desejo. Ele não se basta, não se encerra, não cessa. Não se resolve com a posse, nem com o saber, nem com a norma. O desejo nos desloca porque nos funda como sujeitos faltantes. Somos o que falta em nós. E essa falta é constitutiva — não acidente, mas estrutura. Lacan foi decisivo ao dizer que o desejo nasce da castração simbólica: não desejamos o objeto em si, mas o que ele nos faz faltar. O desejo é o que pulsa entre o que não somos e o que nunca seremos. Desejar, nesse sentido, é sustentar a incompletude.
Mas a cultura não suporta essa incompletude por muito tempo. A linguagem tenta nomear o indizível, a política tenta organizar o irrepresentável, a moral tenta normatizar o impossível. E o autoritarismo — seja ele religioso, político, mercadológico ou tecnocrático — oferece algo ainda mais sedutor: a falsa resolução da falta por meio da imposição de sentido e direção ao desejo. Ele diz: “não sofra, eu lhe direi o que desejar”. E assim, o desejo é capturado.
Essa captura não se dá por repressão direta, como nos paradigmas clássicos do poder. Não se proíbe o desejo — ao contrário, estimula-se o desejo certo. Deseje a segurança, deseje a unidade, deseje a eliminação da diferença. Deseje um líder forte, um solo firme, um culpado definido. O autoritarismo se infiltra como gozo normativo: ele não se contenta em governar os corpos — precisa colonizar os afetos, os medos, os sonhos, os modos de desejar.
Esse desejo capturado é o que podemos chamar de desejo autoritário. Ele nasce da conversão da falta em função, da subjetividade em performance, da angústia em crença. O desejo autoritário não suporta a diferença — quer que tudo coincida com a imagem do mesmo. Não deseja o outro em sua alteridade, mas em sua submissão. E por isso, paradoxalmente, ele deseja menos: deseja não desejar demais. Deseja a conformidade.
A relação entre desejo e autoritarismo é tão íntima quanto esquecida. Porque o autoritarismo não se apresenta como o oposto do desejo, mas como sua resposta organizada, sua solução discursiva. “Você sofre porque deseja errado — nós vamos corrigir isso”. Assim, o desejo é moldado por estratégias de identificação: slogans, bandeiras, narrativas míticas, algoritmos de predição. O desejo torna-se previsível, e, portanto, domesticável. Ele é embalado como produto, como identidade, como verdade moral.
Nesse processo, o sujeito que deseja vai sendo esvaziado. Deixa de sustentar a angústia do não saber para se entregar ao alívio do pertencimento. O desejo deixa de ser falta e se torna certeza. É nesse ponto que o autoritarismo triunfa: quando oferece ao sujeito não o que ele deseja, mas o direito de não mais desejar — de seguir desejando apenas o que lhe foi permitido desejar. E isso é o mais próximo que chegamos do colapso da subjetividade.
O que o autoritarismo teme, no fundo, é o desejo errante, o desejo desgovernado, o desejo que não se encaixa — porque esse desejo é resistente. Esse desejo não se traduz em voto, nem em consumo, nem em performance. Ele é atravessamento, não projeto. É deslocamento, não direção. É invenção, não função. Ele não deseja o retorno à ordem, mas o risco da singularidade. E o risco é tudo o que o autoritarismo precisa neutralizar para manter-se como gozo de massas.
A psicopolítica contemporânea, como aponta Byung-Chul Han, não precisa mais coagir. Ela seduz. E a sedução é feita por imagens de desejo — corpos, estilos de vida, discursos de sucesso — que prometem plenitude sem conflito. Trata-se de uma operação sutil: transformar o desejo em ansiedade, a ansiedade em déficit, e o déficit em consumo. E nisso, o autoritarismo atual não é apenas ideológico — é afetivo. Ele se entranha na solidão, na falta de sentido, no medo difuso de não ser. Ele diz: “só há um caminho”. E o desejo, cansado de não saber, cede.
No entanto, o desejo — quando verdadeiro — não se deixa capturar completamente. Há sempre um resto. Um excesso que escapa à codificação. Um traço de falta que insiste. E é nesse excesso que a liberdade se aloja. Não a liberdade da escolha entre opções dadas, mas a liberdade de desejar contra o script. Desejar de forma imprópria. Desejar o que não se deveria desejar. Desejar sem saber.
Esse é o ponto onde desejo e ética se tocam: quando o sujeito, ao invés de se identificar ao ideal que lhe é oferecido, sustenta sua falta como lugar de invenção. Quando não cede à tentação de ser inteiro. Quando não demanda completude, mas atravessamento. Quando diz: não quero o que querem que eu queira.
Esse desejo, raro, errático, impuro, não cabe no autoritarismo. E por isso, é nele que ainda habita alguma forma de resistência. Desejar, hoje, é não coincidir com o desejo que nos oferecem. É recusar o gozo previsível da ordem, e sustentar o tremor que há em desejar o que ainda não tem nome. É manter viva a pergunta: o que quer o desejo?, mesmo sabendo que ela não tem resposta — e que, talvez, seja melhor assim.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.
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