Enquanto rolava o feed do Instagram, parei num vídeo do humorista Saulo Pinheiro. Ele interpreta dois personagens em diálogo: um vendedor de capinha de celular e um homem cético. O primeiro diz que é fã de bilionários, especialmente de Elon Musk. Trabalha o dia inteiro, pega quatro conduções, chega às nove da noite em casa e reclama do imposto que paga. Ainda assim, ao ser questionado, defende que não se deve taxar os super-ricos. “Vai que um dia eu viro bilionário?”, diz.
A cena de comédia retrata algo comum: muita gente pobre admira bilionários. Esse encantamento nasce da ideia de que qualquer um pode enriquecer com esforço e dedicação. O sociólogo Jessé Souza chama essa crença de “a grande farsa do capitalismo”, a meritocracia. Ela serve para explicar por que tão poucos têm tanto e a maioria tem tão pouco.
A ideia de que todos têm chances iguais mascara a realidade de um país em que apenas 2,5% dos filhos dos 20% mais pobres chegam aos 20% mais ricos, de acordo com o Atlas da Mobilidade, do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social). O percentual é três vezes menor que nos Estados Unidos, quatro vezes menor que na Itália e seis vezes menor que na Suécia.
Mas não são só os pobres que admiram bilionários. Muitos dos mais vulneráveis da classe média, tipo o CEO de MEI que vende bolo no pote ou o motorista da Uber, também se alinham com o topo. Têm medo de escorregar mais um degrau e, sem se sentir parte das políticas sociais, acabam defendendo os bilionários como se existisse uma fila para virar um deles – e a vez deles estivesse quase chegando.
O governo Lula decidiu enfrentar esse mito. Depois de uma série de derrotas no Congresso, o Planalto abandonou o tom conciliador e foi para o confronto aberto com o topo da pirâmide. Na Bahia, na semana passada, o presidente ergueu uma placa: “Taxação dos super-ricos”.
A nova estratégia mira os chamados BBBs: bilionários, bancos e bets. O governo aposta que, ao nomear os adversários, conseguirá recuperar parte da base social que se desmobilizou. Pesquisa Ipsos mostrou que 69% dos brasileiros apoiam a taxação de grandes fortunas. Segundo outro levantamento, da Oxfam, 9 em cada 10 brasileiros concordam que os super-ricos devem financiar políticas públicas de saúde, educação e clima.
O Congresso, por sua vez, não se importa com que o povo pensa. Segundo pesquisa da Genial/Quaest com deputados federais, 61% acham que rico já paga imposto demais, e 75% se opõem à taxação de grandes fortunas. Outros 70% são favoráveis à ampliação de isenções fiscais para empresas e 60% não querem tributar lucros e dividendos.
A mudança de postura do governo veio justamente após a revogação, pelo Congresso, do decreto presidencial que aumentava o IOF. A medida previa arrecadar 30 bilhões de reais em 2026. A maioria do Congresso que votou contra inclui representantes diretos do setor financeiro, do agronegócio e do empresariado.
“Eles não querem pagar. Porque quem paga imposto nesse país é quem trabalha e recebe o contracheque no final do mês que é descontado na fonte”, disse o presidente Lula em um discurso no Tocantins.
Recentemente, um bilionário resolveu externar sua visão de mundo. Ricardo Faria, apelidado de “rei do ovo”, declarou à Folha de S.Paulo que contratar no Brasil é “um desastre”, pois “as pessoas estão viciadas no Bolsa Família”. Ignora, é claro, que, para receber o teto do benefício, de 1.400 reais, seria preciso viver com menos de 218 reais per capita numa casa com dez pessoas. O valor médio pago é 666 reais. Os bilhões nem sempre compram esclarecimento.
A empresa de Faria paga 1.670 reais para operadores, exige moradia no local e “vivência em avicultura”. Segundo levantamento do ICL, Faria responde a 17 processos trabalhistas apenas no TRT do Piauí. As ações envolvem assédio moral, verbas rescisórias e não pagamento de direitos. O bilionário mora nos Estados Unidos, mas transferiu sua residência fiscal para o Uruguai, afirmando que 80% dos negócios da empresa estão fora do Brasil.
Já outro bilionário, Rubens Menin, dono da construtora MRV, do Banco Inter, da CNN Brasil, da Rádio Itatiaia e do Atlético-MG, declarou que o Bolsa Família está “grande demais” e “precisa diminuir”. Sua construtora já foi autuada sete vezes por trabalho análogo à escravidão. Ficou fora da “lista suja” graças a um acordo no apagar das luzes do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Com fortuna superior ao PIB de países como Portugal e Nova Zelândia, Elon Musk virou objeto de culto. No Brasil, perfis apócrifos em redes sociais o comparam a um gênio renascentista. Em janeiro, durante a posse de Donald Trump nos EUA, Musk fez um gesto com o braço estendido igual a uma saudação nazista. Logo depois, disse que os alemães deveriam abandonar “a culpa pelo passado”, em referência ao Holocausto.
O que não se comenta entre sua base de fãs é que a Tesla se aproveitou muito de dinheiro público. Ou que seu pai era dono de uma mina de esmeraldas na Zâmbia, responsável por financiar sua escalada inicial.
Uma história de vida bem diferente do empreendedor que vende capinhas de celular e pega dois ônibus por dia. Aliás, entre os comentários do vídeo de humor que citei na abertura deste texto está o de um corretor de imóveis de Bragança Paulista, em São Paulo. “Pensamento medíocre. Ótimo. Menos concorrência”, escreveu, contrariado com a piada que o incomodou.
Para muitos, os bilionários funcionam como mitos, são inalcançáveis, mas desejados e concentram a fantasia de ascensão. O pobre que os admira se vê como um deles em potencial.
Tentando quebrar essa ilusão, o PT passou a investir em vídeos curtos produzidos com inteligência artificial. São peças hiper-realistas com personagens fictícios que trazem indignações populares em linguagem coloquial. Com trilha dramática, são distribuídos em massa pelo WhatsApp, Instagram e TikTok.
A reação já veio, é claro, com um editorial de O Globo argumentando que: “ataques ao Congresso são inaceitáveis”. O Jornal Nacional, inclusive, já começou a tirar a poeira de suas baionetas lava-jatistas, como apontou Eliara Santana em um artigo nesta CartaCapital.
O PT quer disputar as redes, dominadas pela extrema-direita e reacender o discurso de classe. Resta saber se os algoritmos das big techs darão aos vídeos feitos com IA pela esquerda a mesma tração digital que oferecem ao bolsonarismo.
Certo é que a maioria dos brasileiros apoia taxar os super-ricos. Ainda assim, uma parte da população defende quem a explora. É o medo de ver ruir a ilusão de que um dia será convidado para o camarote. Mesmo que passe a vida inteira catando latinha do lado de fora da catraca ou entregando as chaves das casas onde os ricos vão morar.