A justiça brasileira, em uma ofensiva contra os direitos das mulheres, levou à prisão de ao menos 218 delas entre os anos de 2012 e 2022, sob a acusação de aborto ou de auxílio ao procedimento. Os dados, extraídos de um novo levantamento do Instituto de Bioética (Anis) em parceria com a organização de direitos humanos Ríos/Rivers, expõem a brutalidade do sistema judiciário do País.
O estudo aponta que 569 indivíduos foram investigados, denunciados ou processados pelo crime no período. A maioria das acusadas é formada principalmente por mulheres pobres.
Das detenções, 175 ocorreram em caráter preventivo, ou seja, antes mesmo de qualquer decisão judicial definitiva. A pesquisa sugere que o número real de condenações pode ser ainda maior, devido à falta de clareza e transparência nos registros públicos dos tribunais.
O relatório também denuncia uma conduta recorrente de violação do sigilo profissional por parte de agentes de saúde e conselheiros tutelares. Aproximadamente 46% das denúncias de aborto investigadas tiveram origem nesses profissionais, o que constitui uma infração não só de princípios éticos, mas também de preceitos constitucionais e legais.
Casos detalhados no documento revelam que mulheres foram submetidas a coação para confessar crimes durante atendimentos médicos. Isso se deu sob ameaça ou chantagem moral, muitas vezes sem a existência de qualquer prova material da prática abortiva.
A pesquisa do Anis indica ainda que confissões obtidas sob coerção e acusações baseadas em especulações são rotineiras nos processos. Muitas mulheres enfrentaram acusações criminais apenas por relatos informais ou suspeitas, como o consumo de chás ou analgésicos, sem qualquer laudo ou exame pericial que confirmasse a realização do aborto.
Magistrados e promotores, segundo o estudo, frequentemente empregaram termos como “cruéis”, “maléficas” ou “frias” para caracterizar as mulheres, baseando seus juízos em preceitos morais e não em evidências factuais.
Em diversos casos, mulheres que foram vítimas de estupro foram tratadas como criminosas, e não como vítimas. Essa situação incluiu adolescentes forçadas a manter gestações indesejadas, ou que foram denunciadas ao tentar acessar o aborto legal.
A co-diretora do Anis e coordenadora da pesquisa, Luciana Brito, criticou que “o sistema de justiça impõe às mulheres medidas estigmatizantes de longa permanência. Após iniciado um processo, elas ficam por anos se apresentando em juízos.
Muitos casos são expostos na imprensa e espalhadas pela vizinhança em cidades pequenas. Elas têm medo de morrer, de serem presas e ainda existe uma violação de identidade também”.
Os relatos colhidos durante a pesquisa também evidenciam os traumas que transcendem os autos processuais. Uma mulher, internada devido a uma emergência obstétrica, relatou:
“Na hora que eu tava na sala de parto, a enfermeira-chefe me questionava e dizia ‘confessa, a gente já sabe o que você fez, confessa, vai ser melhor pra você’. Falava também de Deus, que eu ia ser castigada para sempre.”