Procurador de Justiça e doutor em direito pela USP, Roberto Livianu publicou no jornal golpista Folha de S. Paulo um artigo intitulado A lei não pode servir como abrigo para golpistas, fazendo uma defesa no mínimo curiosa do chamado Estado democrático de Direito e, mais especificamente, da perseguição judicial ao bolsonarismo. Diz o autor:

“Cientificamente, os crimes contra a ordem democrática são mais danosos para o corpo social e vulneram a comunidade de forma difusa, com fraturas e traumas equivalentes àqueles produzidos pelas bombas de efeito retardado. Ou seja, não são crimes instantâneos atingindo pessoas certas e determinadas, como o homicídio, o estupro ou o roubo.

São chamados doutrinariamente de crimes vagos, pois suas vítimas são indeterminadas.”

Ora, o argumento de que “crimes contra a ordem democrática são mais danosos para o corpo social e vulneram a comunidade de forma difusa”, sendo “vagos” e com “vítimas indeterminadas”, nada mais é do que um pretexto para a instauração de uma ditadura, com o Estado agindo fora do que a lei lhe permite fazer. Pode escapar ao promotor, mas a essência do Estado democrático de direito que ele diz defender é o chamado Princípio da Legalidade, que estabelece que o Estado e seus agentes só podem fazer o que a lei expressamente autoriza. Isso está proclamado na Constituição Federal, Artigo 37, caput, que diz:

“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes (grifo nosso) da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)”

Além dessa norma constitucional, o princípio supracitado também é proclamado no artigo 5º, inciso II, que diz expressamente que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, no mesmo artigo, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, e finalmente, no inciso XL: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Todos os artigos citados reforçam que, ao contrário do que diz Livianu, é o artigo central que impõe aos agentes públicos a estrita vinculação à lei, significando que o Estado só pode fazer o que a lei expressamente autoriza. Quando se aceita, porém, a definição de “crimes vagos”, com “vítimas indeterminadas”, abre-se uma brecha gigantesca para o arbítrio estatal.

Fora a selva da Idade Média, onde qualquer coisa que desagradasse o rei podia ser punida, desde o advento do Estado democrático de direito, só pode ser considerado crime aquilo que está devidamente descrito e determinado. Sua tipificação precisa ser clara, permitindo que qualquer cidadão saiba exatamente o que é proibido e quais as consequências.

Ao classificar certas ações como “bombas de efeito retardado” contra a “comunidade de forma difusa”, sem uma definição precisa, o Judiciário e o Estado ganham o poder de interpretar qualquer ato de oposição ou dissidência a uma determinada política como “crime”. Essa indefinição, é preciso dizer, não é acidental, mas a marca registrada de regimes ditatoriais, de modo a permitir toda sorte de ataques do Estado contra os opositores.

Ditaduras não perseguem pessoas por crimes claramente definidos, mas por serem “inimigos do Estado”, “ameaçarem a ordem” ou “subverterem a moral”. O conceito de “vítima indeterminada” permite que o Judiciário justifique a perseguição de qualquer indivíduo ou grupo, sob a alegação de proteger um bem abstrato, sem a necessidade de provar um dano concreto a uma pessoa específica.

Desse modo, a lei deixa de ser um instrumento de garantia quanto aos limites de repressão do Estado e passa a ser uma ferramenta de perseguição política. A verdadeira bomba de efeito retardado para o corpo social não é o crime em si, mas a legitimação de um Estado que se arvora no direito de atuar sem limites claros impostos pela própria lei que deveria defender.

“Quando se difunde uma narrativa de menoscabo à proteção ao Estado democrático de Direito, como vimos no caso ‘Débora do batom’, a pretensão é minimizar a gravidade das condutas, tentando construir redenominações suavizantes para delitos graves.”

Ora, e qual exatamente é gravidade da seguinte conduta: pegar um batom, usá-lo para escrever em uma estátua, tirar uma foto do momento. Como bom promotor que é, um carrasco para efeitos práticos, Livianu faz um intrincado malabarismo retórico para tentar convencer o leitor de que o valor subjetivo dessa ação é o que a torna grave. A própria Constituição, contudo, o desmente, como pode ser conferido nos artigos supracitados, que destacam o princípio da legalidade.

Além disso, e à luz do que estabelece o artigo 37, o verdadeiro crime é o que está sendo cometido contra os bolsonaristas. Isso porque se não há “crime de escrever com batom em estátua”, é o STF que está ultrapassando os limites de atuação do Estado constitucionalmente estabelecidos. Incontrolável em sua defesa da ditadura judicial, Livianu continua:

“Diante da perspectiva da proclamação pela Suprema Corte da inconstitucionalidade de possível anistia, cogitada pelo Congresso, eis que agora se fala abertamente no mesmo Congresso na possibilidade de mudança da lei penal, abrandando as penas previstas nos artigos 359-L e 359-M, estabelecidas pela recentíssima lei 14.197, de setembro de 2021 (vigente há menos de quatro anos).

Qualquer estudante principiante de direito sabe que em pouco mais de três anos de vigência uma lei não se defasa a ponto de demandar uma revisão de seus termos, o que sinalizaria uma mudança oportunista. A invocação do princípio da retroatividade penal da lei nova, mais benéfica, concebido para evitar excessos punitivistas estatais, não pode jamais estar a serviço de interesses inconfessáveis.”

É de uma canalhice sem tamanho a afirmação de que “qualquer estudante principiante de direito sabe que em pouco mais de três anos de vigência uma lei não se defasa a ponto de demandar uma revisão de seus termos”. O autor dessa pérola, um promotor público e doutor em Direito pelo Largo São Francisco, não passa de um golpista barato que, sem um mísero argumento para defender a ditadura judicial que apoia, vomitou para o público uma asneira que só demonstra o quão pútrido e indefensável é o que ele tenta empurrar goela abaixo.

Não existe lei alguma que estabeleça essa loucura de “prazo de validade” para alterar uma lei; as leis mudam conforme a pressão popular e os interesses se impõem. Para escancarar a farsa de Livianu, basta lembrar que a própria Constituição Federal de 1988, a lei máxima do País, levou menos de quatro anos para receber sua primeira emenda em 1992: exatos três anos e cinco meses de sua promulgação, comprovando que a necessidade de alteração não está atrelada a prazos arbitrários, mas à realidade da luta política e social.

Ainda, quem estabelecer a divisão que separa “excessos punitivistas estatais” de “interesses inconfessáveis”? Em um regime de Estado verdadeiramente orientado pelo direito, é a lei que fará a divisão e isso, tendo como principal preocupação não os “interesses inconfessáveis”, mas os “excessos punitivistas estatais”, comuns na Idade Média e que o advento do iluminismo tentou coibir.

“A lei não pode ser jamais”, conclui Livianu, “um abrigo cínico e inexpugnável a garantir a golpistas impunidade com segurança jurídica. Isso significaria a negação do Estado de Direito”. Ocorre que a lei é, conforme expressa a Constituição, o limite que separa o Estado democrático de direito da barbárie.

Nesse sentido, os verdadeiros golpistas não são os bolsonaristas, que fizeram uso de suas liberdades democráticas para protestar contra um governo com o qual não concordavam. Os golpistas são aqueles que, sob a desculpa de lutar contra a “negação do Estado de Direito”, estão liquidando o que resta dele.

Se o Estado pode considerar a lei, como defende Livianu, “um abrigo cínico a golpistas”, o que temos é um Estado que não respeita as leis. Qualquer semelhança com a Ditadura Militar (1964-1985) não é mera coincidência.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 04/07/2025