Conan, como sempre, está errado
Por Marcelo Zero*
Lula tem toda a razão quando diz que o Mercosul nos protege. Nos protege economicamente e nos protege geopoliticamente, aos nos tonar mais fortes e resilientes, ante a concorrência global e as pressões internacionais.
Contudo, o Mercosul nunca esteve tão ameaçado quanto agora, com a ascensão de Javier Milei e de Trump.
Milei declarou, na recente reunião de cúpula do bloco, que o Mercosul é uma “cortina de ferro,” que impede os países de aproveitarem “suas vantagens comparativas”.
O uso de uma terminologia da Guerra Fria, já em pleno século 21, revela o quanto Milei é obsoleto e equivocado. Conan, seu mentor intelectual canino, um mastim inglês já falecido, ainda está na época de Churchill.
Essa é, na verdade, uma conversa antiga, bolorenta, que vem desde a década de 1990. Desde o início do Mercosul.
A questão central é que governos ultraconservadores e neoliberais de Estados Partes do bloco, como o de Bolsonaro, e Temer, no Brasil, o de Menem e o de Macri, na Argentina (e, agora, com Milei, de novo), sempre foram contrários ao Mercosul soberano e integrador.
Domingo Cavallo, ministro da Economia de Menem vivia dizendo que a união aduaneira era uma “tontería”, e queria acabar com a integração soberana e inserir nossos países, de forma acrítica, à economia estadunidense e à geopolítica dos EUA, via a finada Alca.
Milei, agora, intenta repetir idêntico erro, mesmo com a Argentina sendo bastante protecionista, no comércio do Mercosul, com relação a automóveis e açúcar, por exemplo.
Ora, o abandono da união aduaneira representaria a implosão do bloco. Representaria, em última instância, a transformação do Mercado Comum do Sul em mera área de livre comércio, uma espécie de “Alcasul”.
Era isso que Domingo Cavallo queria, já na década de 1990, e é isso que Milei deseja. É também o sonho de Trump.
É preciso considerar que a união aduaneira é a pedra fundamental do Mercosul, sobre a qual se sustentam outras dimensões importantes do processo de integração, como a livre circulação de pessoas, a constituição de instituições supranacionais, como o Parlasul, e a construção de uma cidadania comum.
De forma semelhante à União Europeia, o processo de integração “mercosulino” não visa apenas desgravar o comércio entre os membros do bloco.
Visa, no plano interno, integrar as economias, as políticas, as instituições e os cidadãos num projeto estratégico de construção conjunta de sociedades democráticas, prósperas e justas.
No plano externo, o processo de integração objetiva propiciar aos Estados Partes inserção soberana e mais competitiva num cenário internacional que se caracteriza por grande assimetria e, mais recentemente, pela ressureição do protecionismo.
Nada disso pode ser alcançado sem a união aduaneira, que transforma as economias do bloco numa única economia, em sua relação com as economias extrabloco.
Ademais, assim como a União Europeia, o Mercosul surgiu da necessidade de construir um entorno regional de paz.
Na Europa, os sucessivos mecanismos de integração surgiram a partir da aproximação bilateral entre França e Alemanha, antigos inimigos na Segunda Guerra Mundial.
Na América do Sul, Brasil e Argentina, antes rivais insuflados por ditaduras, resolveram, já em democracias, se aproximar para cooperarem pacificamente.
Trata-se de projeto que sempre beneficiou o Brasil e os demais Estados Partes, inclusive a Argentina. Ao contrário do que dizem os conservadores, o Mercosul propiciou e propicia maior e melhor integração das economias dos seus membros à economia mundial.
Saliente-se, mesmo com toda a crise na Argentina, o Brasil exportou quase US$ 20 bilhões para o Mercosul, em 2024. Noventa e dois por cento dessas exportações foram de produtos industrializados, como automóveis, caminhões, tratores, celulares etc. Esse padrão de exportação se espraia para toda a integração regional, aliviando o déficit geral da nossa corrente de comércio da indústria de transformação.
Por conseguinte, o Mercosul, tal como hoje está estruturado, de modo semelhante à União Europeia, tem a dimensão da soberania, da democracia, da justiça social, da correção das assimetrias, da paz, da aproximação dos povos e das culturas e da cidadania comum. É, sobretudo, um projeto civilizatório.
Caso o Mercosul seja transformado em mera área de livre comércio, como o Nafta ou USCMA, por exemplo, todas essas dimensões estratégicas do bloco se perderiam.
Os prejuízos para o Brasil, em particular, seriam imensos. Como salientado, cerca de 90% do que exportamos para o Mercosul são produtos industrializados, de alto valor agregado. Sem a união aduaneira, perderíamos o acesso privilegiado que temos nesse mercado, o qual seria ocupado por países que têm economias industriais bem mais competitivas.
Na realidade, os neoliberais, que sempre encararam com hostilidade o Mercosul, sempre almejaram também se desfazer da união aduaneira para firmarem, de forma atomizada, acordos de livre comércio com “países avançados”, no entendimento de que essa integração assimétrica às “cadeias globais de valor” conduziria ao crescimento econômico e à prosperidade. Trata-se de anacrônica ilusão neoliberal, refutada pelo trágico exemplo do México, entre vários outros.
Mas há uma diferença grande entre Domingo Cavallo e Javier Milei.
Cavallo falava contra o Mercosul em um momento histórico em que os EUA, a Europa e o Japão, enfim, os países mais desenvolvidos, investiam muito em livre comércio e pressionavam bastante os países em desenvolvimento a aderir acriticamente ao “laissez-faire”.
Mas o momento histórico mudou completamente.
A bem da verdade, o atual contexto econômico mundial, que inclui forte desarranjo das cadeias globais de valor, indica a necessidade de se investir em cadeias regionais de produção, amparadas em políticas estatais de desenvolvimento sustentável. Ambientalmente sustentável e socialmente sustentável. Isso seria impossível, porém, no quadro do “regionalismo aberto” desintegrador proposto pelos neoliberais.
Ademais, é óbvio que os EUA de Trump não têm mais nenhum interesse em livre comércio. Ao contrário, desejam impor um protecionismo brutal e desregrado a todos os países.
A única coisa que Trump deseja, na América Latina, é conter os avanços de aproximação da China e de outros países na região, bem como perseguir os imigrantes latinos.
Quer que a América Latina volte a ser o “quintal” submisso que era antes. Pete Hegseth, o secretário de Defesa de Trump, afirmou precisamente isso, de modo brutal e claro, em entrevista à Fox News. ‘Vamos recuperar nosso quintal’, declarou ele.
Assim, o abandono do Mercosul integrador e soberano, como querem Milei, os bolsonaristas e a direita neoliberal de modo geral, seria, especialmente nas novas circunstâncias globais e regionais, muito mais que um erro geopolítico, como o era na época de Cavallo. Seria simplesmente um crime contra a soberania de todos os países do Mercosul. Algo de uma cegueira geopolítica imperdoável.
A “cortina de ferro” está, hoje, do lado de fora. E é imposta por Trump.
Acordos de livre comércio sempre são possíveis e desejáveis (como os recentes acordos entre o Mercosul e a EFTA e entre o Mercosul e a UE), desde que se tomem as precauções estratégicas, os cuidados óbvios com as assimetrias, e a união aduaneira seja mantida. Desde que negociemos de forma conjunta, numa posição de mais força e equilíbrio.
Implodir o Mercosul integrador e soberano significaria destruir o sonho conjunto de termos países mais livres, economias mais prósperas, sociedades mais justas e democracias mais sólidas.
O Mercosul nos protege. Protege nossas economias, nossas sociedades, nossas soberanias e nossas democracias. Nos protege, sobretudo, de sermos mero “quintal”.
Conan, como sempre, está errado.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais