É comum ouvirmos da base governista e até mesmo setores do ativismo que Lula é um presidente bem intencionado, que quer fazer um governo para os pobres, mas está de “mãos atadas” por causa do Congresso e do Centrão, que é “refém” da correlação de forças.

Essa visão, ainda que possa fazer sentido para uma parcela do povo trabalhador que se agarra à esperança de que algo possa melhorar – sobretudo diante de derrotas como a ocorrida recentemente, quando a Câmara dos Deputados derrubou o decreto presidencial que reajustava as alíquotas do IOF – precisa ser combatida com firmeza.

Não é verdade que o governo Lula seja um ator neutro, que deseja reformas profundas mas é impedido pelas instituições. O governo é parte do regime. Ele é, hoje, o principal gestor político do Estado burguês brasileiro e aplica um programa de conciliação de classes que, longe de enfrentar os grandes capitalistas, opera para garantir os seus interesses enquanto administra o descontentamento popular.

Um gestor consciente da ordem burguesa

O sistema político brasileiro é um dos principais instrumentos de domínio de classes da burguesia. Qualquer governo que aceite atuar dentro da institucionalidade, sem mobilizar a classe trabalhadora e sem romper com os pilares do capitalismo, está condenado a administrar a crise para manter a ordem.

A chamada “governabilidade” é somente um nome bonito para esse sistema de controle burguês sobre qualquer governo que se proponha a administrar seus interesses. O PT conhece bem esse jogo e o aceita conscientemente. Já o Centrão não são uma “força externa” ou um inimigo que tenta barrar o projeto popular do governo. São parte integrante da base de sustentação do regime e também do próprio governo Lula.

A “governabilidade” que o PT busca não se opõe ao Centrão, é baseada nele. O governo fez alianças conscientes com esse setor, com o agronegócio, com os bancos e com os militares. Foi assim desde a campanha de 2022, quando selou a aliança com Alckmin, e segue assim hoje com ministérios ocupados por seus representantes diretos.

A derrota do IOF evidencia que na atualidade, de decadência capitalista, nem mesmo medidas tímidas conseguem ser arrancadas da burguesia sem enfrentamento. Mas o governo não quer enfrentamento. Quer estabilidade para manter o arcabouço fiscal, garantir os lucros dos bancos e das grandes empresas e ao mesmo tempo seguir posando de progressista com ações pontuais. Não se trata de um refém, mas de um cúmplice.

O fantasma da extrema direita como chantagem política

Desde 2018, a extrema direita ocupa um lugar importante no cenário político brasileiro. Mesmo com Bolsonaro inelegível, o bolsonarismo continua vivo e se reorganizando. Se bifurca entre setores que tentam parecer mais “institucionais”, como Tarcísio de Freitas, e outros mais radicalizados e ideológicos, como Níkolas Ferreira e Pablo Marçal. Sua base social segue ativa, alimentada pelo moralismo reacionário, pelas igrejas, pelas redes sociais e pelo ressentimento social de setores médios e da classe trabalhadora.

O que o governismo faz diante disso? Alimenta uma chantagem permanente: “não podemos criticar demais o governo, senão volta a extrema direita”. Esse discurso é repetido por parlamentares do PT e do PSOL, por dirigentes sindicais e até por intelectuais que se dizem de esquerda. Toda crítica à conciliação, à política econômica ou à repressão nas periferias é vista como “fogo amigo”, como se Lula fosse o último dique contra o “fascismo”.

Mas essa chantagem não serve para derrotar o bolsonarismo. Serve para proteger o governo. E pior: essa estratégia paralisa a ação da classe trabalhadora, impede que se construa uma alternativa real, independente e revolucionária. O resultado é que a extrema direita avança, não apesar do governo Lula, mas também por causa dele.

O papel do governismo: conter a luta e proteger o regime

O discurso de que “não é hora de criticar, porque senão a extrema-direita volta” é repetido à exaustão pelos setores do governismo. Isso inclui o PT, PCdoB, maioria do PSOL e UP, além de parte das direções sindicais, populares e estudantis. Esses setores cumprem um papel central: atuam como correias de transmissão do governo junto aos movimentos sociais, canalizando a insatisfação para dentro dos limites do sistema.

Justificam cada recuo do governo como “o possível na correlação de forças”, pedem paciência, falam em avanços táticos, mas seguem alimentando a ilusão de que é possível governar para os pobres de mãos dadas com os ricos. Seu papel principal é impedir que se construa uma alternativa independente e socialista.

O “apoio crítico” também ajuda a blindar o governo

Diante do desgaste da base tradicional governista, surgem setores que tentam se apresentar como alternativa por dentro dela. Dizem fazer um “apoio crítico” e afirmam que estão ao lado do povo, mas seguem ajudando a sustentar o governo.

Esse é o caso de setores do PSOL, como o MES, e de parte da intelectualidade progressista. Denunciam algumas políticas do governo, às vezes até votam contra medidas pontuais, mas se recusam a romper com a estratégia de colaboração de classes. Continuam presos à lógica institucional, apostando que é possível “pressionar por dentro” e “arrancar avanços”.

Se em 2022 esses setores chamaram o voto em Lula sem nenhuma exigência política, agora dizem estar fora do governo, mas, na prática, cumprem uma função semelhante à da base governista. Participam de frentes amplas com o PT; assinam manifestos conjuntos e fazem críticas tímidas e pontuais que não mudam em nada o rumo da política geral.

Essa postura é ainda mais perigosa porque confunde setores do ativismo, ajudando a bloquear a construção de uma oposição de esquerda ao governo e uma saída classista e independente para os trabalhadores. Ou seja, de uma alternativa real.

O que seria governar de fato para o povo?

Para governar para os trabalhadores, seria preciso romper com os interesses do grande capital. Isso significa, por exemplo, revogar o arcabouço fiscal e colocar os recursos do Estado a serviço das necessidades populares; reestatizar empresas estratégicas sob controle dos trabalhadores; aplicar um imposto pesado sobre grandes fortunas; suspender o pagamento da dívida pública; garantir moradia, educação, saúde e transporte públicos, gratuitos e de qualidade; enfrentar as polícias que matam a juventude negra nas favelas e garantir os direitos democráticos das massas, como legalização do aborto para as mulheres.

Essas medidas não são utópicas: são demandas concretas que poderiam melhorar a vida da classe trabalhadora e abrir caminho para uma transição socialista. Mas elas são impossíveis de serem aplicadas por um governo que está de mãos dadas com a burguesia.

Por outro lado, na medida em que a única possibilidade de aplicá-lo seria apoiando-se na mobilização popular – e não em acordos com o mercado – coisa que o Lula não tem a menor intensão de fazê-lo, não restam dúvidas que esse discurso do governo como suposto refém do Congresso e do Centrão é falsa do começo ao fim. A derrota do decreto do IOF, foi só mais um lembrete de que não há saída institucional possível dentro de um regime construído para garantir os lucros do capital.

Um governo dos trabalhadores, apoiado nas massas

A saída para a crise brasileira não virá pelas mãos do PT, PSOL ou de qualquer variante reformista e de conciliação de classes, mas de um governo dos trabalhadores, sem patrões, sem banqueiros e sem generais. Um governo que se apoie na mobilização direta das massas, em conselhos de base e comitês de luta. Que enfrente os ricos, rompa com o imperialismo e comece a reorganizar a sociedade sob outras bases: a do socialismo.

Isso exige se colar nos processos reais de luta e investir esforços na auto-organização dos trabalhadores, dos setores precarizados, da juventude, das mulheres, indígenas, do povo negro e das LGBTI+, não em apostar em alianças com os donos do poder. Essa é a tarefa central que está colocada para o ativismo que quer não apenas derrotar eleitoralmente a extrema-direita, mas dar fim no próprio sistema capitalista que sustenta sua existência política: romper com a conciliação, desmascarar o papel do governo, disputar a consciência da nova vanguarda que está surgindo nas lutas e preparar as condições para uma alternativa real de poder.

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Last Update: 03/07/2025