Com amigos assim, quem precisa de inimigos?
por Bruno Resck
O adágio “com amigos assim, quem precisa de inimigos?” costuma ser usado com ironia para nomear a traição que vem de dentro — de quem se diz aliado, mas age como adversário. É mais ou menos — bem mais — o que se viu no último dia 25 de junho, quando 242 deputados federais de partidos da base do governo Lula (e mais de R$ 1 bilhão de emendas liberadas[i]) votaram a favor da derrubada do decreto que elevava o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Uma derrota ruidosa, que revela não apenas fissuras na coalizão governista, mas o esgotamento de um modelo de aliança política. Um modelo de governabilidade através dos gabinetes e distante da população.
Lula foi eleito em 2022 com base em uma frente ampla — expressão que virou sinônimo de composição emergencial para barrar a extrema direita e reconfigurar os marcos mínimos da democracia. Mas esse arco de alianças, desde o início, de forma velada, carregava em seu ventre um pacto com o receituário neoliberal: austeridade, responsabilidade fiscal, pacificação com o mercado. Ou seja, um pacto contra as grosserias de Bolsonaro, mas que blindava a espinha dorsal do neoliberalismo.
O problema é que esse pacto continua exigindo contrapartidas sem oferecer fidelidade. A derrota do decreto do IOF não foi apenas um revés técnico e parlamentar. Foi um gesto político de distanciamento e uma demonstração de força. Deputados que se dizem da base, mas votam como oposição, não são aliados: são um estorvo.
Não se trata aqui de romantizar o enfrentamento ideológico nem de ignorar a complexidade da articulação parlamentar em tempos de fragmentação extrema. Mas é necessário reconhecer que uma aliança que só impõe limites ao governo, sem compromisso de retorno, é apenas um simulacro de governabilidade.
Como escreveu um observador atento: “Se ninguém mais da ‘direita democrática’ aceita compor junto, então é hora de deixar de se comportar como se isso fosse possível. Isso pode significar uma negociação, sim. Mas agora, negociação com um antagonista — não uma composição que aprisiona o governo a uma agenda minimalista e conservadora.”[ii]
O mais grave, porém, é que a derrota do IOF reacendeu, nos bastidores, pressões para cortes em áreas sensíveis como educação e saúde. Se os mais ricos não pagam, a conta recairá sobre os de sempre. A velha austeridade seletiva, em que a responsabilidade fiscal nunca alcança os de cima, volta ao centro do debate.
No entanto, o roteiro da austeridade é conhecido — e o seu final também. Em 2016, Fernando Haddad deixou a Prefeitura de São Paulo com as contas ajustadas e nenhum capital político. Perdeu no primeiro turno e entrou para a história como o único prefeito paulistano a amargar tamanha derrota. Na conjuntura atual, o ministro Haddad segue trilhando sua profissão de fé em torno da austeridade para “arrumar a casa”; nem que para isso tenha que desvincular o salário-mínimo[iii] – antigo sonho de FHC, Temer e Guedes. Quando se governa para agradar quem não tem compromisso com seu projeto, perde-se apoio dos dois lados.
O Brasil pós-2016 torna-se um país cada vez mais ingovernável. O ativismo judiciário alimentado pelo lavajatismo, a expansão desmedida das emendas impositivas, a autonomia do Banco Central e o protagonismo cada vez maior do capital financeiro — que captura o orçamento público — esvaziam o papel do Executivo, que deixa de ser o timoneiro para se tornar apenas alguém levado pelas correntes.
Essas forças se impõem ao projeto político vencedor nas urnas, anulando sua capacidade de direcionar o Estado. Mas é preciso dizer que a paralisia atual não nasceu agora. Após mais de uma década de governos petistas, não houve reformas estruturais capazes de alterar a correlação de forças. Lula, operário-símbolo e herdeiro do prestígio das lutas da esquerda, acabou por usar esse capital político para aplicar uma política que agradava ao grande capital, ao mesmo tempo em que mantinha a classe trabalhadora calma, submissa e despolitizada. O resultado é um país onde os de cima governam, e os de baixo apenas suportam.
O que agrava ainda mais esse cenário é que os sinais vindos das ruas e das urnas são alarmantes, apesar de previsíveis. Lula foi eleito em 2022 por uma margem apertada, resultado de uma conjuntura de repulsa ao bolsonarismo, mais do que de entusiasmo com seu projeto. As eleições de 2024 evidenciou uma ampla derrota do campo progressista, e as últimas pesquisas mostram um claro declínio da popularidade do governo. Porém, o mais preocupante é que, hoje, é a extrema direita quem consegue mobilizar setores populares e colocar o povo nas ruas — ainda que em nome de pautas regressivas e autoritárias. A esquerda institucional, ao se acomodar nos salões da conciliação, perdeu a rua, o ímpeto e a iniciativa.
Talvez estejamos assistindo não apenas ao esgarçamento de uma aliança, mas ao fim de uma ilusão: a de que é possível enfrentar a barbárie sem tocar nas raízes do modelo que a sustenta. Afinal, com amigos assim…
Bruno Resck – Geógrafo – professor no IFMG campus avançado Ponte Nova
[i] LIMA, Kevin; CUNHA, Marcela. Governo libera mais de R$ 1 bilhão em emendas, mas não consegue evitar dia de derrotas no Congresso. G1. 26/06/2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/06/26/governo-libera-mais-de-r-1-bilhao-em-emendas-mas-nao-consegue-evitar-dia-de-derrotas-no-congresso.ghtml
[ii] NETO, MOYSÉS PINTO. A Frente ampla acabou. A terra é redonda. 25/06/2025. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-frente-ampla-acabou/?print=pdf
[iii] SOBRINO, Wanderley Preite. ‘Mudou o regime político no Brasil’, diz Haddad sobre lidar com Congresso. UOL. 27/06/2025. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/06/27/haddad-entrevista.htm
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