A República Islâmica não é politicamente homogênea. Apesar das acusações de ser uma ditadura, essa guerra revelou claramente divergências profundas entre pelo menos duas alas da burocracia iraniana. Uma ala, liderada pelo Aiatolá Kamenei, se mostra claramente anti-imperialista e antissionista, com base nas experiências da revolução de 1979. Ali ficou claro o antagonismo entre Israel e o imperialismo com as aspirações nacionais iranianas e as pontes entre essa experiência histórica e os fundamentos religiosos da versão chiita da religião muçulmana.
A outra ala, liderada pelo atual presidente do Irã, busca, desde sua posse, reatar relações políticas e comerciais com EUA e Europa, apostando nas negociações diplomáticas e políticas como forma de obter a revogação das sanções norte-americanas ao país. Para ele, não há um antagonismo entre Irã e o imperialismo, mas um conflito não tão profundo e possível de ser revertido.
O grande problema é que tanto a burocracia religiosa nacionalista quanto a tecnocracia conciliadora não garantem soluções consistentes para a questão nacional iraniana, porque ambas não possuem a compreensão clara das classes sociais do país e da luta de classes que existe tanto a nível nacional como internacional. Isso explica por que o regime tem mantido essa dualidade de estratégias, que tem enfraquecido o país no enfrentamento com um imperialismo com clara e histórica consciência de classe.
As forças armadas e os trabalhadores assumem uma posição claramente nacionalista e com, pelo menos, grande desconfiança com relação às manobras de negociação realizadas pelo imperialismo. Mas a ala “pacifista” permaneceu patrocinando as negociações com os EUA mesmo depois de ter ficado claro que as exigências dos EUA, de fim do programa nuclear civil, eram absurdas e inaceitáveis.
Há informações de que o presidente do Irã mobilizou a diplomacia do país durante toda a guerra para tentar obter a retomada de negociações. Outra informação difícil de comprovar é que Rússia e China também desenvolveram gestões para retomada das negociações, principalmente diante da ameaça do Irã de fechar o estreito de Ormuz, o que seria um problema sério para a economia chinesa.
Essa atitude do governo formal do país, que tem apoio de frações da burguesia iraniana, é a explicação da total inatividade diante do primeiro ataque de Israel, no dia 13 de junho. Foi um desastre, que fez temer pela capacidade do Irã resistir aos próximos ataques. Esse “susto” certamente repercutiu no interior do Estado iraniano e levou a uma mudança completa de estratégia, com as ondas da Promessa Verdadeira 3 que destruíram quase completamente o Estado de Israel.
No entanto, alguma contradição permaneceu nas entranhas do Estado iraniano, que fez com que houvesse pouco empenho em fortalecer a defesa aérea iraniana, o que tornou fácil para Israel o bombardeio aéreo de regiões importantes do país. O encerramento precoce do conflito, tendo em vista o ataque dos EUA, teve um caráter preventivo e de ameaça às autoridades do Irã, que efetivamente não têm condições de enfrentar sozinhas o conflito com os EUA.
Há algumas lições importantes que essa guerra encerra e que colocam um enorme desafio para as autoridades e o povo iraniano. O Irã tem mantido, desde a Revolução de 1979, a decisão do aiatolá Khomeini de vedar ao país a posse de armas nucleares. Provavelmente esta decisão, que tem fundamento religioso, se deu no contexto de um processo revolucionário extremamente complexo, pois derrubou o regime do xá Reza Pahlevi e causou uma derrota importante do imperialismo na época.
A questão é que, a partir de agora, a posse de ogivas nucleares e capacidade militar de utilizá-las em guerra é crucial para o Irã. Diante da humilhação sofrida por Israel e da manutenção do regime sionista, é muito provável que a camarilha no poder tome a decisão de usar bombas nucleares para destruição total do Irã.
Se uma nação quiser ser um Estado soberano e independente, não terá apenas de ter um exército, embora seja fundamental que o tenha. Ela terá de mostrar que tem o controle de ogivas nucleares e a capacidade e a possibilidade de usá-las em guerra.
As autoridades iranianas tomaram a decisão correta ao expulsar do país os criminosos membros da Agência Internacional de Energia Atômica. Eles mostraram que estão do lado do imperialismo e usaram informações da Agência para incriminar o governo iraniano.
De agora em diante, o Irã deve dar adeus aos tratados de não proliferação nuclear. As próximas décadas viverão uma corrida armamentista aceleradíssima, podendo outros países saírem do Tratado de Não Proliferação Nuclear.
O problema na ação do Irã na guerra não foi ser uma ameaça excessiva, mas sim que não ameaçou de verdade. E não tomar medidas usuais de segurança para manter seu pessoal militar e científico protegidos. O Irã demonstrou que confiava demais, que confiava nas negociações, que confiava na honra de seus adversários, e não teve o senso de autopreservação e de defesa da vida de seus cidadãos.
Os Estados Unidos provaram ser o Estado bandido, que trai qualquer confiança que se possa ter nele.
O fim do imperialismo “bonzinho”
Em outras palavras, é uma clara oposição ao longo das linhas de poder, na qual um “império” autoritário consolidado se opõe a outros polos de poder que não se submetem à sua dominação.
A postura ideológica dos polos da resistência antiocidental é variada. Exceto por uma certa desconfiança generalizada da ideia de um “mercado autorregulável”, não há ideologia comum entre China, Rússia, Irã, Venezuela, Coreia do Norte, África do Sul etc. Sua única identidade é o desejo de se desenvolver de forma autônoma, em nível regional, ao longo de suas próprias linhas de desenvolvimento econômico, político e cultural, sem interferência externa.
Isso representa um claro limite em termos de um real enfrentamento com o imperialismo, que, dentro ou fora da estrutura da OTAN, continua a agir em conjunto em todos os cenários de conflito. Assim como na Ucrânia a Rússia está enfrentando, não indiretamente, as forças do Ocidente unificado, o mesmo acontece com o Irã nos dias de hoje.
Em contraste, as alianças e laços de apoio mútuo entre blocos de “resistência antiocidental” são muito mais ocasionais, possivelmente com acordos bilaterais e limitados.
A superioridade da coordenação do imperialismo no uso da força, no entanto, anda de mãos dadas com outro processo, eminentemente cultural, que é difícil para nós entendermos. Por muito tempo, o Ocidente pós-iluminista se apresentou ao mundo e a si mesmo como a personificação de uma racionalidade universalista, da legalidade internacional e, em geral, dos direitos humanos.
A situação paradoxal reside no fato de que o único elemento verdadeiramente fundamental para a unidade ideológica do imperialismo não tem nada a ver com a razão ou a lei, mas com a ideia de legitimidade conferida pela força militar.
A verdadeira ideologia do imperialismo é forjada, por um lado, na ideia da força autônoma do capital, que se expressa, por exemplo, nos mecanismos da dívida internacional, e, por outro, na ideia da força industrial-militar, justificada como o policial necessário para “cumprir contratos” e “pagar dívidas”.
Por um lado, ele se apresenta como o defensor dos fracos, dos oprimidos, como o guardião global dos direitos humanos, como o guardião severo das liberdades, como a personificação de uma justiça com demandas universais. Mas na ação caem as máscaras, pois incentiva a mudança de regime, espalha mentiras com todo o cinismo possível, usa a diplomacia para baixar a guarda do adversário e depois atingi-lo, como nas negociações de Trump com o Irã. O imperialismo executa todas as formas de vigilância e repressão que considera úteis.
O acordo de cessar-fogo entre Israel e Irã não é o fim da guerra que, como afirma o Eixo da Resistência, só virá com a destruição do sionismo. Somente sua liquidação completa permitirá a coexistência pacífica dos povos na Palestina, como foi o caso antes de Al Naqba.
A verdade é que Israel ainda está mortalmente ferido e que seu confronto militar com o Irã terminou em derrota; especialmente quando parece cancelar o objetivo que perseguia ao provocar o Irã: desencadear uma intervenção direta dos EUA. Na Palestina, o genocídio continua. A demanda por solidariedade internacionalista com a Resistência Palestina está mais forte e mais efetiva do que nunca.
É claro que a crise do capitalismo tem seu epicentro nos Estados Unidos. A Rússia e a China — apesar de todas as sanções ocidentais — estão resistindo com maior poder relativo, tanto econômico quanto militar.
Na Europa, a economia produtiva está desmoronando, em grande parte impulsionada pelas próprias decisões políticas da Comissão Europeia. Essas medidas, embora confrontem objetivamente algumas frações da burguesia europeia, visam cumprir os objetivos da oligarquia imperialista: “limpar” o mercado e favorecer a continuidade da concentração de capital.
Por outro lado, a derrota da OTAN pela Rússia na Ucrânia é um fato inquestionável, que também se acelerou nas últimas semanas. A Rússia eliminou os arsenais militares da OTAN — especialmente os da UE — e dos EUA. Os EUA não têm intenção, por enquanto, de participar de qualquer guerra em grande escala, muito menos com a Rússia.
O discurso belicista dos líderes da UE que agita o espantalho da guerra contra a Rússia é para valer? Independentemente do ódio visceral contra a Rússia, ou das ilusões imperiais que Macron, Kramer, Von der Leyen possam ter, a verdade é que eles não podem enfrentar o enorme país eurasiano que demonstrou seu poder militar no campo de batalha, que também é uma grande potência nuclear e que, dia a dia, fortalece seus laços econômicos e militares com a China.
Para que serve, então, o rearmamento da UE e da OTAN? Sem descartar a possibilidade de que, dentro de uma década, uma guerra de grandes proporções possa ser desencadeada em solo europeu, a verdade é que o discurso belicista obedece a um objetivo muito diferente. Trata-se de criar um cenário de pânico coletivo que faça as pessoas acreditarem que, para se salvarem da catástrofe, o melhor a fazer é alocar quantias fabulosas de dinheiro público aos fabricantes de armas.
É fundamental que a classe trabalhadora entenda qual o papel dos orçamentos de guerra e da militarização social, porque a destruição produtiva, juntamente com o assalto às finanças públicas e a exacerbação da repressão e do controle social, constituem o eixo da estratégia da burguesia para controlar a crise.
O script é o mesmo em todos os casos. Uma situação catastrófica aparece, amplificada pela mídia, o pânico em massa se espalha e a proposta do governo da época de evitar grandes desastres é aceita como o mal menor.
E a receita também é idêntica: endurecer a repressão e o controle social e destinar enormes quantias para fundos de investimento, grandes bancos e multinacionais.
A única diferença é que a destruição produtiva e a miséria correspondente estão aumentando, enquanto o roubo de fundos públicos também cresce.
A burguesia reforça o terror do fantasma da guerra, enquanto, de forma concreta e compreensível para os trabalhadores, está sendo perpetrada uma gigantesca transferência de fundos do proletariado para a burguesia.
E isto é feito quando o desemprego está aumentando e as classes populares ficam cada vez mais pobres.
Objetivamente, um perigoso “pacifismo” é divulgado, precisamente quando, como a Resistência Palestina, as revoluções operárias e os movimentos de libertação nacional mostraram que, diante do imperialismo, apenas a correlação de forças e o saber aproveitar as fraquezas e contradições do inimigo são efetivamente o caminho para a libertação nacional e a revolução social.