Há 4 anos, fui convidada a conversar com assistentes sociais e psicólogas da rede de acolhimento de mulheres da Zona Leste de São Paulo. As profissionais estavam em busca de ferramentas para acolherem mulheres evangélicas, que eram um número expressivo nos serviços de acolhimento às mulheres vitimadas pela violência doméstica daquela região. A conversa foi dura. Elas lamentaram profundamente a impotência de suas ações, principalmente nos casos em que as vítimas voltam para seus agressores, e por causa disso se sentem culpadas e acreditam ser a vontade de Deus estar no lar com o agressor.
Nada mais equivocado pensar que Jesus aprovaria um casamento em que o corpo das mulheres, templo do Espírito Santo, seja blasfemado. As crianças também são vítimas desse modelo de família, que confere todo poder ao homem e submete toda a família às vontades do “pai”. Além da violência psicológica de presenciar cenas de agressão psicológica e física contra suas mães, muitas crianças também são violentadas dentro de casa.
Segundo o Disque 100, a casa da criança é o local em que ocorrem a maioria dos abusos, e as pessoas evangélicas não estão fora desta realidade. Engana-se quem acredita que estar em uma família que segue os padrões bíblicos, pode deixar as mulheres e crianças seguras. E isso é lamentável, porque família é uma das mais importantes categorias de mobilização do segmento evangélico, a defesa da família justifica discurso de ódio, violações dos direitos humanos, dentre outras atrocidades.
Há cerca de dois meses fui procurada por Débora Gonçalves, ex-integrante da Congregação Cristã no Brasil que chegou até essa coluna por meio da leitura de um texto publicado aqui em 2022 intitulado: A igreja que proíbe mulheres de tocarem em seus cultos. Ela me pediu para publicar sua trágica história de violação dentro de casa, local que deveria ser o espaço mais seguro para uma jovem e como a igreja protegeu o agressor ao invés de acolhê-la.
Segundo o relatório “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, resultado da pesquisa conduzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto Datafolha, 6% das mulheres que sofreram violência grave procuraram a Igreja, como rede de apoio e acolhimento e se as lideranças religiosas não forem responsabilizadas por não encaminharem as denúncias que chegam até elas, mais casos como o de Débora podem acontecer.
Débora também procurou a igreja para denunciar os abusos sofridos por seu próprio pai, além da igreja protegê-lo, acusou Débora de manchar a honra do agressor. E isso é uma realidade, ainda segundo o relatório: “Dentre as entrevistadas, 42,7% das mulheres que se identificaram como evangélicas sofreram violência ao longo da vida, contra 35% das que se identificaram como católicas”. Ou seja, no Brasil, as mulheres evangélicas são as mais atingidas pela violência doméstica. Débora lamenta profundamente que em sua casa a “religião estava acima das pessoas, acima dos filhos e da família, não somente acima num nível hierárquico, estava em detrimento das pessoas” e que o ambiente de terror religioso fez com que “aos 19 anos, meu segundo irmão afeminado além do tolerável, se enforcou. Isso resume sua vida, permeada de violência e dor. Me lembro claramente do meu pai destruindo minhas coisas porque era meu irmão quem queria usar, jogando bolsas e maquiagem no chão, quebrando tudo, com a explicação de que a casa dele “Não era zona, pra que se enchesse de veados’”.
Durante a pandemia, Débora procurou ajuda da família para se manter, uma vez que estava com dificuldades financeiras. Foi então que o pai sugeriu que ela fosse sustentada por ele, em troca de um relacionamento sexual. O pai havia traído a mãe, e já estava divorciado há um tempo. Débora denunciou para as lideranças da Igreja e foi desacreditada. Seu pai, mesmo com o histórico conhecido de traição, foi acolhido, enquanto ela, apedrejada.
Infelizmente, a história de Débora não é exceção. A traição nos casamentos entre pessoas evangélicas não é uma raridade. Mulheres fiéis e submissas aos maridos são infectadas com Infecções Sexualmente Transmissíveis devido ao desrespeito e responsabilidade de seus cônjuges. É necessário falarmos sobre como os homens são facilmente perdoados por seus “erros morais”, em detrimento da punição severa das mulheres.
Esse tipo de cultura religiosa faz com que mulheres vivam em casamentos violentos. Não denunciam as violências, não expõem seus maridos, porque sabem que além do casamento, também perderão seus lugares na comunidade religiosa. Foi o que aconteceu com Débora, segundo ela “apesar dos vídeos que fiz relatando a denúncia, apesar de saber que o corpo ministerial tem acesso a esse conteúdo na internet e apesar de ter apelado para que me procurassem, tudo que recebo dos meus catequizadores é o silêncio”
Débora diz que se deu conta de que fez parte de uma realidade que atinge muitas mulheres: “mulheres que também estavam sendo silenciadas dentro da religião me escreveram relatos de abusos, abusadas pelo ancião desde pequena e hostilizada pela equipe de irmãos que a desacreditavam, agredida pelo marido e mantida em cárcere privado etc.”. Se faz necessário leis que responsabilizem líderes religiosos que não encaminhem denúncias, porque esse tipo de ação comunitária de descrédito das palavras das mulheres e ignoram leis de defesa das mulheres vigentes no Brasil, faz com que a cultura da violência contra a mulher se perpetuem e continuem enraizadas nas narrativas sobre família de maneira trágica.
Débora diz que “hoje estou contente por colocar isso para fora e com isso encontrado tantas pessoas que partilham da mesma opinião: mulheres têm direitos humanos”. Infelizmente para ela e para tantas outras mulheres o lar, a família e a igreja não foram um lugar seguro. Precisamos mudar essa realidade, e para isso, é necessário que entendamos que a igreja e líderes religiosos não estão acima das leis. E que muito menos podem interferir no exercício dos direitos sociais e humanos das mulheres. Não é permitido que lideranças religiosas exponham, humilhem e expulsem de suas congregações mulheres que decidiram por suas vidas ao invés de se manterem em lares violentos.
Podemos falar em defesa da família sem defender os entes que as compõem? Jamais! Não há família segura quando somos indiferentes aos direitos das mulheres e crianças.