
Por Miguel Enrique Stédile/ Instituto Tricontinental
Do Opera Mundi
A dominância do dólar sempre concedeu vantagens significativas aos Estados Unidos, como a capacidade de sustentar déficits fiscais e comerciais irresponsavelmente, ou o poder de compra privilegiado dos recursos naturais de outros países. Porém, a acentuação do uso coercitivo da moeda e as frequentes crises do sistema colocam na ordem do dia a urgência de construção de uma nova arquitetura financeira.
Desde a crise dos anos 1970, quando o dólar abandonou qualquer possibilidade de lastro material e se aboliram os limites para a criação de dinheiro, o dólar se tornou uma “moeda financeira”, mais atrativo pelo acesso aos mercados financeiros e liquidez do que pela estabilidade de seu poder de compra. O que permite que os EUA financiem seus déficits, através dos títulos de dívida, em condições privilegiadas e sem obstáculos para alimentar sua indústria bélica. Por outro, a subordinação da economia global à especulação financeira tem submetido toda economia global às vulnerabilidades e instabilidades , como a crise de 2008. As recentes crises ambiental, econômica e da pandemia demonstram a incapacidade do sistema financeiro em enfrentar ou solucionar estas contradições de forma satisfatória ou de proteger países e povos.
Para os países do Sul Global, além do papel na exploração barata dos bens comuns da natureza, na extorsão de poupança através das dívidas, o dólar é um instrumento político através de sanções que bloqueiam pagamentos internacionais e apreendem bens e depósitos no exterior, como ocorrido com a Venezuela e Rússia. A postura arbitrária e truculenta dos primeiros meses do governo Trump apenas aprofundam a necessidade que os países do Sul Global busquem alternativas para construir sistemas financeiros independentes.
Diante deste cenário, alternativas ao dólar, como transações transfronteiriças em moedas nacionais e a redução da participação do dólar nas reservas internacionais, já tem sido construídas por países ou blocos regionais. Mas são insuficientes para a construção de uma nova arquitetura financeira.
Um caminho possível seria construir uma nova economia global que articulasse as economias nacionais com as instituições multilaterais através de blocos e articulações regionais, como arranjos de comércio, como o Mercosul, arranjos de financiamento regional ou bancos de desenvolvimento regional, com plataformas que integrem e cooperem estes esforços com maior inclusão e maior governabilidade local. A atuação de blocos regionais é determinante ainda para assegurar a soberania dos países do Sul Global sobre os bens comuns da natureza, como por exemplo, uma “OPEP dos recursos energéticos” necessários para a transição climática.
Neste contexto, os BRICS poderiam ser o núcleo articulador destas iniciativas, coordenando bancos de desenvolvimento e arranjos regionais, através da ampliação das ferramentas já existentes, o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), mas também através da construção de novos mecanismos como um sistema de pagamentos alternativo ao SWIFT, uma unidade de conta para transações internacionais e reserva e a adoção de moedas digitais.
O certo é que protelar a iniciativa de uma nova arquitetura financeira significa permanecer acorrentado a um sistema desigual, extorsivo e não confiável. É atrelar o destino das populações ao destino dos Estados Unidos e de sua governança autoritária e ensimesmada. Por sua vez, necessariamente, a construção de um sistema alternativo passa pela coragem e ousadia dos Brics em constituírem-se como alternativa de fato para as aspirações do Sul Global.