Economia de Mercado de Ações versus Economia de Endividamento
por Fernando Nogueira da Costa
O mercado de ações se desenvolveu nos Estados Unidos, a partir do fim do século XIX, porque as unidades federativas e seus bancos eram emissores de moeda privada dita “livre”. O governo federal sequer emitia títulos de dívida pública para financiamento corporativo.
Desse modo, as grandes corporações recorrerem a emissões de ações para se financiarem. Surgiu assim a tradição de participação acionária de pessoas físicas em associações com as empresas de capital aberto.
Essa hipótese é articulada como uma interpretação crítica e sistêmica do desenvolvimento do mercado de ações nos Estados Unidos. Em especial, destaca a cultura acionária de base popular contrastante com a trajetória da financeirização periférica em países como o Brasil.
Houve um federalismo bancário e uma fragmentação monetária nos EUA do século XIX. Até a criação do Federal Reserve em 1913, os EUA possuíam um sistema financeiro extremamente descentralizado e instável sem Banco Central.
Cada banco estadual ou local podia emitir sua própria moeda, chamada de Notas Bancárias (Banknotes). O governo federal não emitia moeda fiduciária de curso forçado de maneira centralizada.
O Tesouro Nacional emitia poucos títulos de dívida pública. Em muitos períodos, buscava superávits fiscais por influência do padrão-ouro e do pensamento jeffersoniano e jacksoniano, hostis à dívida pública permanente.
Como resultado, o Estado federal não era o principal emissor de instrumentos financeiros líquidos. Em sua ausência, a intermediação financeira para investimento de longo prazo teve de se deslocar para outras formas de captação, sobretudo ações corporativas.
A ascensão das corporações e o financiamento via mercado de capitais ocorreram com a industrialização, acelerada após a Guerra Civil (1861–1865). Houve então a formação de grandes conglomerados nas atividades de ferrovias, aço, petróleo, eletricidade etc.
Surgiu a necessidade de financiamento de projetos de longa maturação e alto risco, para os quais os bancos fragmentados e com pouca capitalização não eram suficientes. A expansão dos mercados de ações, principalmente via Bolsa de Nova York (NYSE), foi o mecanismo de captação direta de capital pela emissão de ações.
Nesse contexto, o mercado acionário não era apenas uma alternativa, mas uma necessidade estrutural para o financiamento do capitalismo corporativo americano nascente. Daí houve a emergência da cultura acionária popular nos EUA.
A financeirização estadunidense não começa com fundos ou bancos de investimento sofisticados, mas sim com a popularização do investimento direto em ações por indivíduos, ainda no fim do século XIX e início do XX. Surgiu uma tradição associativa típica do capitalismo anglo-saxão na qual o investidor é visto como “parceiro” da empresa, mesmo em grandes corporações.
Após a crise de 1929, a criação de instrumentos regulatórios (como a Securities Act de 1933) e proteções legais para acionistas minoritários favoreceram o acesso direto de pessoas físicas ao mercado.
Essa tradição foi consolidada no pós-guerra com o boom das ações de empresas como General Electric, IBM, AT&T etc. Depois, na Era Neoliberal, foi reforçada nas décadas de 1980-90 com a financeirização da previdência via 401(k) e fundos mútuos, mas sobre uma base já existente de participação de indivíduos no capital acionário.
No Brasil e em outras economias periféricas, a função de financiamento das empresas foi historicamente exercida pelo Estado e pelos bancos públicos com crédito direcionado, subsidiado para setores prioritários, não por emissão de ações. A ausência de uma tradição de estabilidade monetária e de proteção ao investidor minoritário inibiu a formação de uma cultura acionária popular.
O mercado de ações ficou restrito às elites financeiras e aos fundos institucionais, ao contrário dos EUA. Além disso, a financeirização brasileira é marcada pela renda fixa pós-fixada, vinculada ao juro real elevado, com alta liquidez e baixo risco, diferentemente do papel exercido pelas ações nos EUA como ativo financeiro popular de longo prazo.
Em comparação, nos EUA, ausência de um Estado federal emissor centralizado de moeda e títulos no século XIX forçou o desenvolvimento precoce de mercados de ações como principal instrumento de financiamento de longo prazo das grandes corporações. Esse vazio institucional estatal favoreceu a emergência de uma cultura acionária descentralizada e associativa nos EUA, enraizada nas práticas de participação direta de pessoas físicas no capital empresarial.
Essa tradição histórico-institucional ajuda a explicar por qual razão os EUA têm alto percentual de pessoas físicas na bolsa, as empresas americanas historicamente priorizam shareholder value e os países periféricos, com sistemas financeiros mais centralizados e estatais, seguiram trajetórias distintas — orientadas à dívida pública, à intermediação bancária e ao rentismo com risco soberano para não haver fuga de capital para o dólar, ou seja, a dolarização como há na Argentina.
Portanto, o desenvolvimento dos mercados de capitais reflete trajetórias históricas marcadas por estruturas institucionais distintas. Os Estados Unidos desenvolveram um mercado de ações profundamente enraizado na cultura popular, enquanto o Brasil mantém uma estrutura financeira altamente concentrada, estatal e avessa à participação direta de indivíduos no capital acionário.
Minha hipótese é a ausência de um emissor federal de moeda e dívida no século XIX levou os EUA a desenvolverem precocemente mercados acionários como forma de suprir o vazio de intermediação financeira de longo prazo. Distingo dois tipos ideais de sistema financeiro: um é o sistema de mercado de capitais (market-based), com financiamento via ações e mercado de títulos corporativos, outro é o sistema de intermediação bancária (bank-based), nos quais o crédito bancário e o Estado são os principais alocadores de capital.
A categoria de “financeirização periférica” analisa como o Brasil absorveu a lógica financeira global sob condições específicas: juros reais elevados, ausência de cultura acionária e predomínio da dívida pública interna como ativo preferencial.
Até a criação do Federal Reserve em 1913, nos Estados Unidos, cada banco estadual emitia sua própria moeda. O governo federal evitava déficits crônicos e não emitia títulos federais como instrumento regular de política econômica. A fragmentação institucional exigia soluções privadas para o financiamento da infraestrutura e da industrialização como em ferrovias e aço.
O financiamento da expansão ferroviária nos anos 1870–90 foi feito majoritariamente por emissão de ações e bônus corporativos. A NYSE tornou-se o epicentro de um sistema financeiro descentralizado e pró-capital corporativo. O modelo acionário substituiu o banco universal europeu e criou uma forma associativa de propriedade do capital.
Leis como a Securities Act (1933) e a criação da SEC ampliaram a confiança do pequeno investidor. Nos anos 1950–60, surgem os primeiros fundos mútuos e previdência corporativa baseada em ações (401k). Desde os anos 1990, cerca de 50% das famílias americanas detêm ações direta ou indiretamente.
Desde os anos 1930, o Estado brasileiro assume o papel de emprestador de última instância do setor privado, via bancos públicos, subsídios diretos. A lógica desenvolvimentista priorizou o crédito direcionado e a captação por dívida pública, não mercado acionário.
A hiperinflação consolidou instrumentos pós-fixados (LFT, CDI) como forma dominante de poupança. A partir de 1994, com o Plano Real, a dívida pública se torna o principal lastro dos ativos financeiros de rentistas. O ambiente institucional desfavorece a confiança no mercado acionário por parte do acionista minoritário.
Há, no mercado de ações brasileiro, altas taxas de corretagem e baixa educação financeira, baixa proteção ao investidor minoritário, predominância de IPOs voltadas a grandes investidores institucionais, preferência cultural por ativos com rentabilidade segura e liquidez diária.
Dados comparativos
Indicador | EUA (2022) | Brasil (2022) |
Famílias com ações diretas/fundos | 53% | 4% |
Dívida pública como % da carteira PF | 10% | >60% |
Número de empresas listadas | ~4.000 | ~400 |
Crédito ao setor privado via mercado | Alta | Baixa |
Presença de banco estatal | Residual | Dominante |
A tradição acionária popular nos EUA surgiu não da abundância institucional, mas da ausência de Estado como agente financeiro direto. Ao contrário, no Brasil, a intermediação financeira estatal preencheu o vazio deixado por um mercado de capitais incipiente e um ambiente macroeconômico muito instável.
A superação dessa divergência exigiria, no Brasil, uma reforma tributária e previdenciária capaz de desincentivar a concentração de renda em títulos públicos, uma educação financeira massiva, políticas de desbancarização do investimento e criação de plataformas acessíveis para ações e cooperativas de capital.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “