Mercosul: Lula e Milei não devem se reunir, mas acordo de importação de gás poderia avançar
por Maíra Vasconcelos
Especial para Jornal GGN
A Argentina é hoje um país anti-Mercosul, mas permanece no bloco e pode até avançar em cooperação com o Brasil. País governado por Lula assume a presidência temporária das mãos de Milei, que busca “liberalizar mais o Mercosul”.
É provável que os governos da Argentina e do Brasil, Javier Milei e Lula da Silva, não tenham a tradicional reunião bilateral, durante a 66a Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, amanhã, em Buenos Aires. No entanto, guardadas as divergências político-ideológicas, espera-se que ambos mandatários atuem de modo pragmático, sem “curtos-circuitos” visíveis, durante a cerimônia de trnsferência da presidência temporária do bloco. Mas será necessário atenção às gestualidades dos presidentes. “Gestos mais de cordialidade, mas não muito mais do que isso, e até de frieza”.
As considerações são do cientista político Alejandro Frenkel, doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Buenos Aires (UBA). No entanto, Frenkel ressaltou que ambos países poderiam ainda continuar avançando em relação às tratativas de cooperação sobre o acordo gasífero, assinado no final do ano passado. Para que o gás produzido na Argentina, em “Vaca Muerta”, no interior do país, chegue ao Brasil.
Outra questão citada por Frenkel é que, se bem o governo Milei tem ameaçado sair do Mercosul, o país permanece e isso mostra que o bloco, então, tem algum peso para o país. O principal objetivo da Argentina é conseguir “liberalizar mais o Mercosul, deixá-lo menos protecionista” disse. O cientista político também comentou sobre a exclusão da reivindicação argentina sobre as Malvinas, nas declarações do Mercosul, desde que Milei é presidente. E a expectativa sobre se o assunto voltará a ser pautado, como acontecia desde 1996.
Ainda sobre a pauta da reunião de amanhã, como ponto de desacordo, a Argentina poderia incluir algum assunto fora dos âmbitos do Mercosul. Por exemplo, a guerra entre Irã e Israel. O governo Lula tem se mostrado crítico em relação às políticas de Benjamin Netanyahu. Em uma postura oposta, o governo Milei diretamente qualificou o Irã como país inimigo, em um alinhamento irrestrito a Israel.
É a primeira vez que Lula vem à Argentina desde que assumiu Javier Milei. Ao menos até agora de manhã, horário dessa entrevista, não está confirmada nenhuma reunião bilateral. Considerando as divergências, os insultos de Milei a Lula, o fato de que Lula também apoiou abertamente Sergio Massa, durante a campanha eleitoral. Em termos políticos, o que se pode esperar dessa reunião de traspaso de presidência?
Em termos políticos, acho que tem algo disso que você diz, que está tensa a relação entre Lula e Milei. Mas, acredito que irá primar o pragmatismo. Não acho que vai ter algum curto-circuito ou um problema específico, um desplante. Pode ser que, efetivamente, não se concretize nenhuma reunião bilateral. Não sei se foi solicitada por parte do Brasil ou não. Mas duvido. De qualquer forma, haverá gestos. É necessário prestar atenção à gestualidade. Gestos mais de cordialidade, mas não muito mais do que isso, e até de frieza.
Mas, politicamente, parece que a reunião tem importância.. Bom, a importância que tem, em primeiro lugar, é que a Argentina é anfitriã, como presidência pro tempore. E hoje a Argentina é o país mais anti-Mercosul, por assim dizer. Mas, ao mesmo tempo, marca, me parece, uma política do governo argentino de não romper com o Mercosul. Vem ameaçando, nesse sentido. Em dado momento, quando Milei falou sobre assinar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, e tem feito declarações contra o Mercosul, de sair do Mercosul. Bom, até agora, politicamente, é importante no sentido em que afirma que a Argentina continua estando no Mercosul e continua apostando, ao menos, que o Mercosul é um espaço que continua tendo sua validade.
Depois, por outro lado, estão os objetivos. Eu diria que o que veio avançando com a Argentina como presidente temporário do Mercosul, é na redução da tarifa externa comum, ou de agregar exceções (de produtos). Basicamente é liberalizar mais o Mercosul, deixá-lo menos protecionista. Essa é a agenda da Argentina no Mercosul. Ou que não exista mais o Mercosul, ou que, pelo menos, como uma zona aduaneira; ou reduzir ao máximo possível a tarifa externa comum. Até agora, está transitando a segunda opção.
Isso que você mencionou, já poderia avançar na reunião de quinta?
Tenho entendido que os chanceleres já estão avançando nisso. Os chanceleres se reuniram várias vezes nos últimos meses. E foram acordando. Acho que, de qualquer forma, o que vão fazer agora os presidentes é selar um pouco, rubricar isso que já vinha sendo negociado, entre chanceleres e as áreas mais técnicas, de efetivamente avançar e reduzir as proteções tarifárias de determinados produtos.
Tem alguma matéria onde pode haver algum tipo de trava na negociação? Seja por questões ideológicas também.
Está o acordo entre União Europeia e Mercosul, que acho que também aí há uma sintonia entre todos os países para avançar.
Esse acordo ainda não está concluído, não?
Não, tem que ser ratificado, ainda.
E você acha que Lula pode conseguir dar esse passo, agora que Brasil terá a presidência pro tempore?
Acho que, na realidade, depende mais da Europa do que dos países do Mercosul. Lula já disse várias vezes que quer avançar. Há pouco tempo, Milei esteve na França e, com Mácron, conversaram sobre o acordo. Diria que no Mercosul há consenso em avançar. O problema são os países europeus.
Agora, se pode ter algum assunto que tensione a reunião, é uma boa pergunta. Uma questão referente a algum assunto internacional. Não sei se, nesse caso, o governo argentino vai querer incluir algum assunto, sobretudo com o Brasil, que pode chegar a ser conflituoso. Penso sobre Israel, ou algo talvez… Acho que o governo argentino pode talvez incorporar algo referente ao terrorismo, e nao imagino o Brasil se opondo a isso. Mas acho que se o Brasil suspeita que isso se refere mais ao Oriente Médio, aí pode chegar a ser um problema. Porque o Brasil, o governo Lula, tem uma postura mais crítica sobre o Estado de Israel.
Depois, com a China, não imagino que tenha algum problema nesse sentido. Depois tem que ver se o governo incluiu o assunto Malvinas. Até agora, uma das novidades, desde que assumiu Milei, é que o governo argentino não impulsionou a inclusão do assunto Malvinas nas declarações do Mercosul. Quer dizer, se inclui um parágrafo dizendo que o Mercosul apoia o reclamo argentino, então, está para ver se, dessa vez, incluem algo disso ou não.
A Argentina vinha incluindo a questão das Malvinas desde quando, nas reuniões do Mercosul ?
O Mercosul incluía o assunto das Malvinas, desde 1996, ininterruptamente. Quando chegou o governo do Milei, ao menos nas primeiras reuniões, de presidentes e chanceleres, o assunto Malvinas estava ausente nas declarações. Era algo tradicional. Sempre se incluía um parágrafo como, apoia-se o reclamo argentino no assunto das Malvinas, etcétera. E, com o Milei, isso deixou de acontecer.
Sobre a entrada da Bolívia no Mercosul. Parece que ainda falta ratificar para concluir definitivamente. Em relação a isso pode haver algum entrave ou já é um fato?
Já é um fato, já foi aprovado pelos parlamentos. Não sei agora como está a questão. A mesma coisa aconteceu com a Venezuela, que é a adoção das normativas do Mercosul na Bolívia. O que aconteceu com a Venezuela é que o país virou membro pleno do Mercosul e isso implicava que teria que modificar as suas leis, algumas de suas políticas comerciais para se adaptar aos estândares do Mercosul, como membro pleno. Naquele então, a Venezuela não tinha logrado. E, de fato, foi uma razão pela qual alguns países quiseram colocar isso como motivo para suspender a Venezuela. Bom, já passou muito tempo, Venezuela não se adequou aos padrões como membro pleno, suspendemos o país. Não teve êxito.
Mas, no caso da Bolívia, não está em risco a sua adesão como membro pleno. O que não sei é como está o estado de incorporação e harmonização de suas leis e normativas econômica, comercial e aduaneira aos padrões do Mercosul. O que implica ser membro pleno do Mercosul.
Já que mencionamos a guerra de Irã e Israel… última pergunta, quase como um parêntesis. A postura do governo Milei, como se vê internamente o que tem dito o presidente e como tem se posicionado?
É difícil dizer como se vê, de parte de quem. A ver. A Argentina tem uma comunidade judia muito importante. E é uma comunidade, ou é uma boa parte da comunidade que tem uma atividade política importante. Quer dizer, é um ator político relevante na Argentina. E, além do mais, as instituições estão muito alinhadas ao governo israelense. Nesse marco, que Milei tenha uma relação tão estreita com Israel, se arma uma dinâmica como de profunda adesão das instiuiçoes das comunidades judias ao governo de Milei e, sobretudo, se está emparaetando muito a ideia de que Milei é uma espécie de, estou exagerando, como de governo judio… bom, nao judio, é um governo pró-Israel, claramente.O problema é que se traslade a, digamos, os que estão contra o governo que isso alimente um sentimento antissemita. Isso, por um lado, me parece um problema para a Argentina.
Mas um efeito negativo que pode trazer esse alinhamento da Argentina com o governo de Israel. Por outro lado, o que, sim, tenho visto em algumas figuras políticas argentinas, não só do peronismo, mas também de setores da oposição, que são próximos ao governo, o PRO, o macrismo, e demais, certa crítica de que não é necessário que a Argentina se envolva assim em um conflito. É demasiado, é uma exagerada atuação por parte do governo. Certa percepção de que, bom, não necessariamente tem que tomar partido, mesmo que o Irã seja o autor de dois atentados na Argentina. Ademais, a qualificação do Irã como inimigo. Acho que é um qualificativo muito forte para a política exterior argentina, falar de um inimigo. E tudo isso, para se fazer notar frente a Israel. Então, acho que talvez uma percepção, salvo aqueles que são muito partidários de Milei, de que não é necessário que a Argentina se envolva dessa maneira no conflito.
Bom, Alejandro, ficamos por aqui. Ou você tem algo mais para acrescentar, dentro disso que conversamos?
Algo que lembrei aqui, que poderia chegar a ter alguma novidade é um assunto que estão avançando, Brasil e Argentina. Um assunto bastante cooperativo, dentro desse marco de tensão e conflito com Lula, é o acordo gasífero. Um acordo para que a Argentina comece a prover gás ao Brasil. Isso tinha começado a ser conversado com o governo de Massa, o governo de Milei continuou. De fato, assinaram, em algum momento, me parece que os ministérios da Economia. Digo, imagino, que pode ter uma notícia ou algo referente a esse assunto que seria um ponto de distensão ou de cooperação entre Argentina e Brasil.
Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).