A França respira

por Alexandre Silva

Todos suspiramos aliviados no final do domingo, com o resultado das eleições legislativas francesas. Não só o Rassemblement National (RN) e seus aliados não conquistaram a maioria como tiveram desempenho muito abaixo do prognosticado. As previsões dificilmente falavam em menos de 200 cadeiras para a extrema-direita, que seria com certeza a maior força do parlamento. Mas acabou em terceiro lugar, com apenas 143 assentos (sendo 126 do RN e 17 da dissidência gaullista liderada por Eric Ciotti).

Tudo indica que a junção de forças entre a esquerda reunida no Nouveau Front Populaire (NFP) e a centro-direita do presidente Emmanuel Macron, com a retirada das candidaturas menos promissoras nos distritos em que disputavam com a extrema-direita, deu efeito acima do esperado.

Com 182 deputados, a esquerda foi a vencedora da eleição (aos quais se somam 13 eleitos à esquerda que não integravam o NFP, em geral dissidentes de um ou outro partido). O bloco de sustentação ao presidente ficou com 168 cadeiras.

Sim, suspiramos aliviados. Mas a situação está longe de tranquila. Mesmo ficando abaixo das previsões, a extrema-direita teve um grande crescimento na Assembleia Nacional: tinha apenas 89 deputados até então, ou seja, cresceu 60% de 2022 para cá. E a aliança com uma dissidência dos gaullistas lhe aproximou ainda mais da normalização que Marine Le Pen tanto busca, isto é, sua aceitação como participante legítima de uma disputa democrática.

Por outro lado, a sensação de fiasco – a vitória parecia ao alcance da mão e se converteu num terceiro lugar – pode dar gás à oposição interna a Le Pen, aumentando o conflito no interior do RN.

A formação de um governo de coalizão entre esquerda e centro direita não é tão fácil. Teoricamente, o maior partido do maior bloco teria a prerrogativa de indicar o primeiro-ministro. Isto é, seria um deputado do La France Insoumise, o grupo de Jean-Luc Mélenchon. Mas muitos da centro direita apostam no discurso oportunista dos “dois extremos” e dizem que não aceitam os insubmissos no governo.

Mélenchon dificilmente teria condições de assumir o cargo, uma vez que é considerado uma figura muito divisiva. Mas qualquer um dos seus companheiros de partido enfrenta resistência similar.

O próprio Mélenchon deu o tom, ao afirmar que uma coalizão majoritária no parlamento deve se comprometer com a revogação da infame reforma que retirou direitos previdenciários, era rechaçada pela grande maioria dos franceses, foi alvo de protestos maciços e acabou empurrada goela abaixo do país e da própria Assembleia por Macron, que usou um dispositivo constitucional que lhe permite fazer mudanças dessa monta sem o aval do Poder Legislativo.

Não é uma exigência sectária. Além do efeito nefasto da reforma sobre a classe trabalhadora, ela foi, sem dúvida nenhuma, o grande alimento para o crescimento da extrema direita, afastando muitos eleitores que, de outra maneira, prefeririam as políticas conservadoras do presidente. Mas é difícil imaginar que uma liderança política tão servilmente dedicada aos interesses do capital, como Macron, aceite um compromisso desse tipo.

Afinal, barrar a extrema-direita não é programa de governo. É só contenção de danos. O desafio para a esquerda francesa é usar a força que o resultado eleitoral lhe dá para alcançar políticas a favor das maiorias da população, com impacto efetivo – única forma real de mudar esse jogo.

Mas a situação no NFP também não é confortável. Os insubmissos têm a maioria das cadeiras do bloco, mas uma coalizão de grupos mais centristas, como o Partido Socialista e os Verdes, é capaz de lhe fazer frente. O Partido Comunista alcançou apenas nove cadeiras e não tem número sequer para compor uma bancada própria na Assembleia.

É preciso saber se estes partidos da centro esquerda resistirão ao canto de sereia de formação de uma maioria que exclua os insubmissos, que una apenas uma parte do NFP, passe pelo macronismo e chegue na ala do partido da direita gaullista (os Republicanos) que não compôs com a extrema direita.

As outras alternativas, que são um governo minoritário da NFP ou um governo não partidário, formado por “técnicos”, são senhas quase infalíveis para instabilidade permanente. E novas eleições só podem ser convocadas no prazo de um ano. Para a extrema direita, o resultado talvez não seja tão ruim assim. Eles apostam no caos, quanto mais continuado melhor, a fim de culpar as outras forças políticas e credenciar a candidatura de Marine Le Pen às eleições presidenciais de 2027.

Alexandre Silva é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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Última Atualização: 09/07/2024