O professor e colunista Aldo Fornazieri publicou no portal Brasil 247, um artigo intitulado Alexandre e Dino: os leões de Brasília e o golpismo do Congresso, enaltecendo – naturalmente -, os supracitados ministros do Supremo Tribunal Federal como se fossem hábeis seguidores da ciência política de Maquiavel, razão pela qual teriam sucesso em combater a extrema direita. “Todos aqueles que atuam politicamente”, começa o autor, “deveriam saber que a natureza da política e do poder é ambivalente, estruturada numa série de pares paradoxais (…) que varia de acordo com as variações interdependentes entre objetivos e circunstâncias”, defende Fornazieri, concluindo que “essas são regras universais do agir político estabelecidas por Maquiavel”.
“Moraes percebeu que o bolsonarismo articula um estado permanente de intenção golpista e de uma propensão compulsiva de violar as leis e a Constituição. Não há como debelar e cortar a cabeça dessa propensão compulsiva agindo de forma branda. Dadas as atuais circunstâncias, agir de forma branda significaria dar vasão a um golpismo continuado, que é praticado pela extrema-direita em todas as partes.”
Tudo está muito bem dito, porém existe um pequeno detalhe que depõe contra a lucubração do professor: nem Alexandre de Moraes e nem Flávio Dino deveria atuar politicamente, mas juridicamente. Não é, finalmente, a função de um juiz, fazer algo além de aplicar a lei, o que torna o suposto combate ao fascismo, um crime por si, especialmente à luz do fato de que sob o Estado Democrático de Direito – que juram defender -, o poder de atuação dos agentes do Estado está subordinado à lei.
Diz o artigo 37 da Constituição Federal de 1988: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade (grifo nosso), impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)”. Traduzindo, se o cidadão é livre para fazer qualquer coisa que a lei não proíba, os agentes do Estado só podem fazer o que foi autorizado por uma lei previamente aprovada. Qualquer coisa além, é ilegal.
Isso dito, Moraes e Dino não estão sendo os “leões” que Fornazieri defende por “cortar a cabeça” do que chama de “propensão compulsiva de violar as leis e a Constituição”. Estão, na realidade, sendo criminosos, tal como seus pares – os demais ministros do STF – foram há nove anos, quando decidiram fazer o mesmo, porém contra o governo da então presidenta Dilma Rousseff. Troque “intenção golpista” por “intenção corrupta” – a acusação que os monopólios de imprensa levantavam contra o PT, na ocasião – e o que temos é a mesma política repressiva, além do mesmo método ilegal, onde o verdadeiro golpe é feito por aqueles que dizem estar seguindo a lei.
“Com o argumento de que o STF usurpa o poder, congressistas, chefiados por Hugo Mota e Alcolumbre, agem em prol de um golpe contra a Constituição ao querer impedir que o Supremo exerça suas funções de controle da constitucionalidade. Ora, em todas as constituições democráticas e republicanas cabe às Supremas Cortes exercer o controle constitucional, seja barrando abusos do Parlamento, seja impedindo abusos do Executivo. Querer que o Congresso seja absolutamente independente para praticar os arbítrios e as violações que quiser, consiste numa prática golpista, pois tudo o que é contra a Constituição é golpe.”
Ora, é perfeitamente lícito a Fornazieri temer a extrema direita a ponto de defender, por exemplo, que o STF aja com a máxima dureza, sob o argumento de “não há como debelar e cortar a cabeça dessa propensão compulsiva agindo de forma branda”. Por uma questão de honestidade no debate, porém, seria esperado que “se congressistas, chefiados por Hugo Mota e Alcolumbre” estão se queixando “que o STF usurpa o poder”, não adianta dizer que isso é mero “argumento”. É preciso demonstrar a falsidade da argumentação.
Fornazieri não faz isso, apenas desqualifica, muito embora se trate de uma questão central de toda a discussão. O STF, finalmente, está usurpando algum poder ao se intrometer nas decisões do Congresso? É claro que sim.
De um ponto de vista geral e com todas as suas limitações, o Congresso ainda é o espaço de representação do povo brasileiro, ainda que muitas manobras atuem, mas seus membros foram eleitos pela população. Quem, no entanto, elegeu os membros do STF? Quantos votos tiveram Dino e Moraes para se colocarem acima do Congresso a ponto de poderem se portarem como “leões de Brasília”? Nenhum.
De nada adianta “em todas as constituições democráticas e republicanas cabe às Supremas Cortes exercer o controle constitucional, seja barrando abusos do Parlamento, seja impedindo abusos do Executivo”. Em primeiro lugar, se um poder não eleito está acima de representantes eleitos pela população, não há meio termos: todas as constituições democráticas e republicanas estão erradas. São tudo, menos democráticas.
Finalmente, o interessante do argumento é que coloca às claras a dificuldade encontrada pela esquerda pequeno-burguesa em ter personalidade. Incapazes de pensar por conta própria, assumem como normal que o País imite o que fazem os piores bandidos da humanidade, responsáveis por todos os golpes de Estado ocorridos no Brasil desde os anos 1940, pelo menos.
Ocorre que é natural que o imperialismo defenda a supremacia do Judiciário sobre os poderes eleitos, uma vez que seus interesses são ferozmente impopulares. Mesmo no circo dos parlamentos onde a corrupção é a norma, a política imperialista é difícil de ser sustentada, como demonstra a dificuldade encontrada pelos governos Temer e Bolsonaro, apenas para ficar em exemplos brasileiros.
Nas disputas presidenciais, desde 1998 os monopólios não ganham o Executivo sem apelar para golpes escandalosos e altamente custosos do ponto de vista político. O último, por exemplo, demoliu o PSDB e fez surgir o bolsonarismo, cujos atritos com o bolsonarismo são grandes o bastante para justificar toda a perseguição claramente ilegal, criada por forças com as quais a esquerda não tem nenhuma ligação, nenhum interesse em comum. Tivesse realmente lido Maquiavel, saberia que se apoiar em forças de outros é uma péssima política.