Circuito Imobiliário na América Latina: Estudo do Caso Neoliberal do Chile

por Fernando Nogueira da Costa

O livro “O circuito imobiliário na América Latina: dependência, ditadura e neoliberalismo no Chile” (1a. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2025) é originado da tese de doutorado de Vitor Hugo Tonin. Ele se dedica ao estudo de caso do Chile.

Um de seus propósitos centrais é criticar a narrativa amplamente aceita de o modelo habitacional neoliberal, implementado no Chile, ter sido uma solução bem-sucedida para o problema da habitação e da exclusão urbana. Ele aborda o persistente problema da habitação e da exclusão urbana na América Latina, situando-o em seus fundamentos histórico-estruturais.

Destaca haver um divórcio entre a produção imobiliária formal e a capacidade de pagamento da maioria dos trabalhadores na América Latina, pois os preços das moradias são muito elevados para eles. Busca entender as razões e causas dessa permanente exclusão habitacional e urbana.

Para analisar criticamente a produção capitalista do espaço, nas cidades latino-americanas, Tonin articula um arcabouço teórico-metodológico específico. Ele propõe uma abordagem histórico-estrutural, fundamentada na categoria de “padrão de reprodução do capital” da teoria marxista da dependência.

Essa perspectiva permite examinar as interações entre as dinâmicas locais e as influências globais, situando o fenômeno urbano chileno em um contexto mais amplo de dependência e transformação capitalista. A análise enfatiza a importância metodológica de transitar entre diferentes níveis de abstração (modo de produção, sistema mundial, padrão de reprodução, formação social-espacial, contradições urbanas) para compreender a urbanização latino-americana.

O autor utiliza o conceito de circuito do capital como um processo cíclico de três fases (D-M…P…M’-D’) para descrever e analisar o modelo imobiliário. A categoria de circuito imobiliário é central no esquema teórico proposto para articular os elementos (categorias e conceitos) presentes na produção capitalista do espaço urbano na América Latina, desde aspectos materiais até subjetivos.

Tonin adapta o conceito de circuito imobiliário para os países dependentes. Considera as relações sociais de propriedade da terra e a superexploração da força de trabalho capazes de alterarem a dinâmica em comparação com países centrais.

Ele formula a hipótese de as transformações capitalistas, promovidas no circuito imobiliário de países dependentes, aumentarem a capacidade de produção de moradias, mas ao mesmo tempo elevarem a exclusão habitacional e urbana. Essa exclusão não seria resultado da falta de capitalismo ou capacidade produtiva, mas sim da própria lógica do circuito imobiliário estruturado sobre a superexploração e os superlucros derivados da propriedade.

O livro se propõe a analisar e evidenciar o verdadeiro papel desempenhado pelo Estado e pelo sistema financeiro na construção e evolução do modelo chileno, apresentado por neoliberais como “um sucesso de mínima intervenção estatal”. Ora, a análise inicial já sugere o modelo “bem-sucedido” ter dependido fortemente de financiamento público e o Estado ter exercido um papel-chave na formação tanto da expansão quanto das limitações do modelo chileno.

A tese analisa a constituição e evolução do circuito imobiliário no Chile no período de 1982 a 2018. É quando o modelo neoliberal de circuito imobiliário chileno entra em operação e passa a ser divulgado internacionalmente. Essa análise é dividida em dois ciclos de acumulação principais: 1982-2002 e 2003-2018.

O trabalho de Tonin busca deixar elementos de análise do caso chileno e reflexões teóricas sobre as conexões entre urbanização dependente e o circuito imobiliário para futuras pesquisas comparativas na América Latina.

Ele estabelece a base para uma análise crítica e aprofundada do modelo habitacional chileno, desmistificando sua narrativa de sucesso ao investigá-lo através de um arcabouço teórico-metodológico capaz de considerar as especificidades históricas e estruturais do capitalismo dependente na América Latina. Especialmente, diferencia-se quanto às dinâmicas da superexploração, da propriedade da terra e do circuito imobiliário.

O modelo de circuito imobiliário chileno é analisado como estruturado sobre a superexploração da força de trabalho por conta dos salários baixos e a lógica rentista derivada da propriedade fundiária. A expansão do circuito, nesse contexto, não resulta em maior acesso à moradia para todos, mas sim na exacerbação da exclusão, porque os altos preços decorrentes do rentismo se chocam com a baixa capacidade de pagamento dos trabalhadores submetidos à superexploração.

Tonin detalha as manifestações da espoliação urbana promovida pela lógica do circuito imobiliário neoliberal durante este período. A expansão imobiliária, embora quantitativa, gerou problemas como: produção de moradias de baixa qualidade construtiva; adensamento excessivo (tanto das moradias quanto dos conjuntos); aprofundamento da segregação urbana, com a relocação de populações pobres para a periferia através das políticas de subsídio; aumento da dívida habitacional e problemas de insolvência entre os proprietários de moradias sociais (“crise dos com teto”); espoliação financeira, especialmente através do sistema privado de pensões (AFPs), porque canalizou recursos dos trabalhadores para sustentar o circuito imobiliário, mas gerou baixas aposentadorias (“espoliação previdenciária”).

O fim do primeiro ciclo (crise de 1997-2002) é marcado por uma dupla crise – uma crise de acumulação e uma crise habitacional. O problema principal se desloca do déficit habitacional absoluto dos “sem teto” para os problemas enfrentados pelos “com teto” como segregação, má qualidade das habitações, endividamento.

O autor desmistifica a ideia de o crescimento do setor ter se dado puramente pela ação do mercado e das finanças privadas. O crédito hipotecário privado para baixa renda não se desenvolveu espontaneamente e dependeu fortemente do financiamento público e dos recursos dos fundos de pensão. A securitização via Letras Hipotecárias, se não alcançou a complexidade do modelo americano, é porque foi, em grande parte, substituída por um mecanismo mais simples de financiamento bancário.

Em resumo, demonstra o “modelo de sucesso” chileno de circuito imobiliário, iniciado sob a ditadura, foi construído e sustentado pela ação massiva do Estado, operando sobre a superexploração do trabalho e a lógica rentista da propriedade. Essa estrutura fundamental resultou, no fim do primeiro ciclo, em uma expansão da produção, mas ela, paradoxalmente, aprofundou a exclusão urbana em suas diversas formas, marcando uma crise de acumulação e uma crise habitacional para aqueles, embora tivessem um teto, vivendo em condições precárias, segregadas e endividadas.

Tonin também se dedica à análise do segundo ciclo de acumulação do modelo neoliberal de circuito imobiliário dependente no Chile, cobrindo o período de 2002 a 2018. Este ciclo é subdividido em fases de recuperação (2003-2004), expansão (2005-2015) e esgotamento ou transe (2016-2018). Mostra como o modelo foi atualizado, atingiu seus limites e aponta para uma nova estratégia de acumulação.

Embora o modelo original tenha sido atualizado, ele atingiu um ponto de esgotamento. As contradições internas, como o fortalecimento do poder de monopólio de proprietários e incorporadores e a lógica rentista, tornam inviável a continuidade da expansão da produção, em larga escala, voltada para famílias superexploradas, endividadas ou subsidiadas.

Diante do esgotamento da estratégia anterior, baseada na massa de produção, surge uma nova estratégia de acumulação, focada no aumento da margem de lucro. Essa nova estratégia é impulsionada pela lógica rentista, derivada da propriedade imobiliária, e se manifesta no crescente investimento de capitais (pequenos e corporativos) em propriedades para aluguel.

A financeirização se aprofunda, canalizando grandes volumes de capital para o circuito imobiliário através de mecanismos como a abertura de capital por construtoras, Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs), investidores institucionais (AFPs), Companhias de Seguro de Vida (CSVs) e capital bancário. Esses capitais buscam a apropriação de rendas imobiliárias, associando-se aos incorporadores e aprofundando a lógica rentista e especulativa. Há o surgimento de grandes proprietários corporativos investidores em edifícios multifamiliares para aluguel.

O Estado chileno mantém um papel fundamental e ativo na sustentação do circuito, contrariando a ideologia neoliberal. Sua ação se dá no estímulo à produção privada por meio de políticas de subsídios, na viabilização do crédito hipotecário, inclusive através do investimento público em bancos e da canalização dos recursos dos fundos de pensão, e na flexibilização das normas urbanísticas e do mercado de terras para favorecer a acumulação.

O segundo ciclo (2002-2018) culmina em uma dupla crise: a crise de acumulação interna do próprio circuito imobiliário e uma crise social (habitacional e urbana) em múltiplas dimensões da espoliação. Revela a verdadeira face do neoliberalismo.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected]

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Last Update: 30/06/2025