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O que é o metaintermediário algorítmico — e por que isso importa

por Reynaldo Aragon

Quem, afinal, está comandando nossa vida? Quero deixar claro desde já: este texto não nasce de um exercício acadêmico distante da realidade. Ao contrário. Nasce da urgência de entender — e fazer entender — um fenômeno que afeta diretamente a autonomia, a liberdade e a democracia.

Imagine acordar e, antes mesmo de abrir os olhos, a voz do seu assistente digital já te avisa a hora, a temperatura, o melhor horário para sair de casa e até recomenda o café da manhã — conforme o que ele calcula que você vai gostar. O trajeto até o trabalho é sugerido pelo aplicativo de mapas, evitando engarrafamentos antes que você sequer pense na rota. Seu calendário foi ajustado automaticamente, priorizando reuniões que o algoritmo julga mais importantes para o seu desempenho. No horário do almoço, um aplicativo de entrega decide quais pratos aparecem primeiro na tela, baseando-se não apenas no seu histórico de pedidos, mas também no seu humor — rastreado por interações no celular e no relógio inteligente.

Ao longo do dia, enquanto você rola a timeline, vídeos, notícias e conteúdos surgem sem esforço, perfeitamente moldados para agradar, irritar, divertir, gerar engajamento — sempre dentro de parâmetros que não são definidos por você. Quando a noite chega, o streaming já sugere o filme ideal para seu estado emocional e, por fim, um lembrete programado o aconselha a dormir mais cedo para otimizar sua saúde.

Parece mágico. Parece confortável. Mas também levanta uma questão inquietante: quem, afinal, está comandando nossa vida?

Vivemos em um tempo em que a mediação tecnológica deixou de ser apenas uma ponte entre nós e o mundo. Passou a ocupar o papel de decisor silencioso, que antecipa, organiza e executa tarefas no nosso lugar — sem que percebamos como essa autoridade foi conquistada.

É sobre isso que quero falar neste texto. Venho investigando há anos as transformações radicais da tecnologia sobre a sociedade. Venho me debruçando sobre o conceito de metaintermediários algorítmicos justamente para nomear esse fenômeno: sistemas invisíveis que se interpõem entre nós e o mundo, mas não apenas nos conectam — eles escolhem. Eles moldam nossos desejos, antecipam nossas decisões e redesenham nossa liberdade sem pedir permissão.

Compreender como essas tecnologias funcionam não é apenas um exercício teórico: é uma necessidade democrática. Nomear o que nos captura é o primeiro passo para resistir. Porque, no fim, disputar a técnica é disputar a própria vida.

Por que estou escrevendo sobre isso?

Quero deixar claro desde já: este texto não nasce de um exercício acadêmico distante da realidade. Ao contrário. Nasce da urgência de entender — e fazer entender — um fenômeno que afeta diretamente a autonomia, a liberdade e a democracia.

Tenho dedicado anos de pesquisa e jornalismo ao estudo de como a tecnologia se transforma em ferramenta de dominação. Vi, ao longo desse tempo, que muitos termos circulam sem dar conta da complexidade real do problema. Falamos de “algoritmos”, “redes”, “IA”, mas não nomeamos com precisão o que esses sistemas realmente fazem quando passam a decidir por nós.

Por isso, o conceito de metaintermediários algorítmicos vem sendo desenvolvido e debatido como uma forma de dar nome ao que se tornava invisível. Seu objetivo é evidenciar que não estamos lidando apenas com plataformas de intermediação neutras, mas com estruturas ativas, capazes de reorganizar a percepção, estabelecer prioridades e influenciar decisões de maneira opaca, sem qualquer processo democrático ou transparente.

Entender essa nova forma de mediação é crucial. Só assim conseguimos revelar o grau de controle silencioso que se esconde por trás da promessa de conveniência. Só assim podemos perceber que delegar continuamente nossas escolhas não é neutro — tem consequências políticas, sociais, culturais e até existenciais.

Se reconhecemos o funcionamento desses metaintermediários, podemos agir coletivamente para limitar seus abusos, regulá-los, transformá-los, ou até substituí-los por alternativas mais democráticas e plurais. O objetivo aqui não é demonizar a tecnologia, mas devolver ao debate público a chance de decidir qual tecnologia queremos, sob quais valores, para qual futuro.

É por isso que escrevo: para armar cognitivamente cada pessoa que ler estas linhas. Porque compreender a técnica — e suas ideologias — é hoje condição para defender a liberdade de existir, pensar e sentir de forma autônoma.

O que são metaintermediários algorítmicos?

Para entender como chegamos aos metaintermediários, é importante lembrar que a mediação tecnológica sempre existiu. Jornais, rádios e televisões atuaram durante décadas como intermediários clássicos, selecionando conteúdos, organizando informações e influenciando a percepção pública — mas ainda de forma relativamente visível e sujeita a algum grau de crítica e debate.

Com a ascensão da internet, surgiram novos intermediários digitais: motores de busca, redes sociais, plataformas de comércio eletrônico. Eles passaram a personalizar conteúdos de acordo com preferências declaradas, mas ainda exigiam do usuário uma ação deliberada — clicar, pesquisar, escolher. Esse processo já representava um avanço na capacidade de modular comportamentos, mas preservava alguma autonomia consciente.

A partir daí, entramos na era dos metaintermediários algorítmicos, que representam uma mutação mais radical. Diferentemente de algoritmos tradicionais, programados para executar instruções pontuais e explícitas, os metaintermediários são projetados para antecipar ações, interpretar contextos e decidir antes mesmo que o sujeito formule sua escolha.

Em termos didáticos, pode-se dizer que o algoritmo tradicional funciona como um robô assistente: ele espera comandos e os executa de forma previsível. Já o metaintermediário se comporta como um gestor invisível: ele observa continuamente, aprende com dados afetivos e contextuais, reorganiza prioridades e executa decisões sem depender de ordens diretas. Ou seja, em vez de ser apenas uma ferramenta, passa a ocupar o lugar de um agente ativo, assumindo para si a mediação do real.

É exatamente essa passagem — da mediação consciente e controlada para a mediação automatizada e preditiva — que marca o salto histórico da técnica para um novo modelo de poder, menos transparente e mais difícil de contestar.

O termo metaintermediário algorítmico pode parecer complicado à primeira vista, mas sua lógica é simples: “meta” significa acima, além; “intermediário” é aquilo que faz a ponte entre duas partes. Portanto, metaintermediários são sistemas que não apenas intermedeiam a relação entre pessoas e informações, mas atuam acima da nossa consciência deliberada, assumindo funções de escolha, organização e até antecipação de comportamentos.

Diferentemente de algoritmos tradicionais, que operam a partir de comandos explícitos e conhecidos, os metaintermediários se tornam presenças invisíveis e permanentes. Eles monitoram contextos, aprendem padrões emocionais, interpretam sinais afetivos e passam a decidir silenciosamente no lugar do sujeito.

Exemplos práticos ajudam a entender:

  • O feed do TikTok, que sabe o que prenderá sua atenção mesmo antes que você perceba;
  • O sistema de recomendação do Netflix, que sugere conteúdos prevendo seu humor;
  • Aplicativos de saúde que filtram informações e indicam condutas de forma automática, sem abrir espaço para reflexão crítica;
  • Assistentes de voz que ajustam agenda, priorizam contatos e até respondem e-mails no seu lugar.

Esses sistemas não só facilitam a vida cotidiana — eles a redesenham, transformando a relação entre ação e pensamento. Ao antecipar nossas escolhas, dissolvem o tempo da dúvida, do erro e da hesitação, valores fundamentais para a liberdade e a cidadania. Assim, ao mesmo tempo, em que prometem conveniência, instalam uma nova forma de dependência, mais profunda e menos percebida.

Por que eles são perigosos?

Os metaintermediários algorítmicos não representam apenas uma inovação tecnológica sofisticada — eles carregam riscos profundos para a autonomia individual e para a democracia. Ao operar acima da nossa consciência, esses sistemas silenciosamente moldam percepções, hábitos, prioridades e afetos, eliminando o espaço natural do questionamento.

Na prática, isso significa que as escolhas já chegam “prontas”, dissolvendo o tempo da dúvida, do erro e da hesitação, elementos essenciais para qualquer ação verdadeiramente livre. Quando tudo flui sem conflito, sem resistência, sem espaço para a incerteza, perde-se a capacidade de deliberar criticamente. E sem deliberação, não há cidadania plena.

Um risco evidente é o viés invisível: algoritmos que decidem, por exemplo, quais notícias ou opiniões devem aparecer primeiro, podem distorcer a realidade, fortalecer bolhas de informação e inviabilizar o debate democrático. Outro exemplo são filtros automáticos que barram conteúdos políticos ou culturais considerados “fora do padrão”, sem qualquer explicação ao usuário — uma forma de censura indireta, que esvazia o dissenso.

Além disso, há impactos profundos sobre a formação da subjetividade. Metaintermediários podem antecipar desejos, emoções e comportamentos, normalizando padrões de consumo, de relacionamento e até de expressão política. Aos poucos, o sujeito deixa de ser um agente autônomo para se tornar um nó passivo de uma rede que opera pela eficiência.

Por isso, o perigo não está apenas na tecnologia em si, mas na forma como ela reorganiza valores, reduz a complexidade do pensamento e instala um ideal de vida sem atrito — conveniente, mas sem liberdade real.

A alienação de segunda ordem: explicando de modo didático.

Para compreender a gravidade dos metaintermediários, é útil pensar no conceito de alienação em camadas. Na chamada primeira alienação, típica do capitalismo de vigilância, nossos dados pessoais são transformados em mercadoria. Plataformas coletam informações sobre hábitos, preferências e comportamentos, e as comercializam para anunciantes ou outros interesses privados, reduzindo o sujeito a um mero fornecedor de matéria-prima informacional.

A segunda alienação, porém, vai além: ela transforma o próprio pensamento em mercadoria. É aqui que os metaintermediários atuam de forma mais sofisticada e perigosa. Eles não apenas exploram os dados produzidos, mas passam a moldar os desejos, as percepções e até as decisões antes mesmo que se formem de modo consciente.

Para ilustrar, basta pensar em assistentes virtuais que “protegem” o usuário de conteúdos potencialmente tristes ou polêmicos sem consultá-lo, alterando silenciosamente sua exposição ao mundo. Ou em sistemas de recomendação que, ao detectar sinais de estresse, direcionam conteúdos de entretenimento leve, impedindo o enfrentamento de conflitos reais ou debates necessários.

Esses mecanismos dissolvem o campo da dúvida e da contradição, essenciais para a construção de senso crítico e para a prática política. O resultado é uma subjetividade cada vez mais moldada por fluxos automatizados e previsíveis, incapaz de resistir ou de questionar.

Em termos diretos, a alienação de segunda ordem significa prescindir, sem perceber, do direito de pensar e sentir por conta própria. Quando até nossas emoções passam a ser gerenciadas por códigos opacos, o espaço de liberdade se torna perigosamente estreito.

A geopolítica e o colonialismo cognitivo.

Os metaintermediários algorítmicos não se distribuem de forma neutra pelo planeta. Pelo contrário: eles reproduzem assimetrias históricas e aprofundam dinâmicas de dependência, sobretudo entre o Norte Global — onde se concentram as Big Techs — e o Sul Global, que fornece dados, linguagens e afetos, mas não define as regras do jogo.

Esse fenômeno vem sendo chamado de colonialismo cognitivo. Em vez de impor dominação por armas ou territórios, a dominação passa agora pela mediação invisível das percepções, da linguagem e da própria capacidade de decidir. Dados extraídos de populações periféricas — muitas vezes sem consentimento claro ou informado — alimentam sistemas projetados com valores, objetivos e parâmetros distantes de suas realidades.

O resultado é um tipo de subordinação informacional: os saberes, as culturas e os modos de vida locais são transformados em combustível para algoritmos que retornam decisões padronizadas, alheias ao contexto e à pluralidade cultural. Um exemplo prático é o uso de modelos de reconhecimento facial treinados majoritariamente com rostos brancos, que falham ao identificar pessoas negras, indígenas e pessoas pobres, expondo esses grupos a erros graves e aumentando o risco de serem priorizados como alvos do exercício da violência estatal — desde abordagens policiais abusivas até prisões injustas.

Outro exemplo é a filtragem automatizada de discursos políticos de movimentos sociais do Sul Global, considerados “radicais” por lógicas normativas vindas do Norte, que podem silenciar vozes legítimas de resistência.

Entender essa geopolítica dos metaintermediários é essencial para disputar a soberania tecnológica e informacional. Se não questionarmos quem constrói essas infraestruturas, quem define seus critérios e com quais interesses, corremos o risco de transformar toda uma geração em periferia cognitiva — abastecendo algoritmos globais sem nenhum poder de decisão sobre seus próprios destinos.

Por que entender esse conceito ajuda a resistir?

Pode parecer, à primeira vista, que compreender conceitos como o de metaintermediários algorítmicos seja apenas uma curiosidade acadêmica. Mas, na verdade, nomear o que está acontecendo é um ato político e estratégico. Quando se entende que esses sistemas não apenas intermedeiam, mas modulam e decidem silenciosamente, ganha-se clareza sobre os mecanismos de dominação e sobre como combatê-los.

Reconhecer que a tecnologia não é neutra — que carrega valores, interesses e ideologias — é o primeiro passo para romper o mito da inevitabilidade. Saber identificar como nossos desejos, emoções e decisões estão sendo moldados permite questionar, cobrar transparência, exigir regulamentações e construir alternativas mais justas.

Além disso, esse entendimento nos arma cognitivamente para resistir à adesão passiva, aquela sensação de “não tem jeito” tão comum diante da força das grandes plataformas. Se podemos nomear o fenômeno, podemos também mobilizar movimentos sociais, comunidades, educadores, legisladores e cidadãos para disputar o sentido da tecnologia — e fazer dela uma ferramenta voltada ao bem comum, não ao lucro de poucos.

No fundo, aprender a enxergar os metaintermediários algorítmicos significa recuperar a capacidade de escolha, de crítica e de reinvenção. E essa é a essência de qualquer sociedade democrática.

Caminhos para resistir: alternativas possíveis.

Se os metaintermediários algorítmicos representam uma forma sofisticada de controle e alienação, não basta apenas denunciá-los. É preciso construir alternativas reais e mobilizar caminhos de resistência. Uma dessas estratégias passa pela regulamentação democrática: leis claras que imponham transparência, auditabilidade e participação social na construção e fiscalização dos algoritmos que governam a vida cotidiana.

Outra via fundamental é a promoção de tecnologias abertas, baseadas em códigos livres e auditáveis, que permitam maior controle coletivo e evitem a concentração de poder nas mãos de poucas corporações globais. Tecnologias abertas estimulam o aprendizado público, a inovação local e a pluralidade de soluções, reduzindo dependências estruturais.

Além disso, vale recuperar a ideia da ética da fricção — ou seja, a defesa do direito ao erro, ao conflito, à hesitação e à pluralidade de interpretações. Esses elementos, muitas vezes vistos como “ruídos” pelas lógicas algorítmicas, são essenciais para qualquer ambiente democrático, pois sustentam a criatividade, a crítica e a autonomia.

Outro conceito potente para a resistência é a tecnodiversidade, que parte do princípio de que não existe uma única forma legítima de organizar tecnologia. Cada sociedade, cada cultura, cada território tem o direito de desenvolver sistemas alinhados a suas cosmologias, seus valores e suas linguagens.

Por fim, a educação midiática popular e a formação crítica sobre inteligência artificial podem empoderar a sociedade para participar ativamente desses debates, garantindo que o futuro tecnológico seja construído de forma mais justa, inclusiva e democrática.

Conclusão: a dignidade de hesitar.

Voltemos àquela cena inicial: o cotidiano mediado por assistentes digitais, aplicativos, sistemas de recomendação que organizam o que vemos, ouvimos e até sentimos. É tentador aceitar a promessa de conforto e eficiência, mas cada gesto de delegação tem consequências. Cada escolha automatizada reforça a ideia de que a nossa própria autonomia pode ser dispensada — e isso não é neutro.

Reconhecer os metaintermediários algorítmicos como agentes ativos e silenciosos de modulação do desejo e da percepção é o primeiro passo para recuperar a liberdade de agir, de pensar e de sonhar de forma autônoma. Não se trata de negar a tecnologia, mas de transformá-la em ferramenta realmente a serviço do bem comum, sem abrir mão do dissenso, do erro e do debate que sustentam a democracia.

A luta contra a dominação algorítmica é, no fundo, uma luta pela possibilidade de existir como sujeito pleno. Disputar a técnica significa disputar o nosso próprio futuro — enquanto indivíduos e enquanto coletividade.

Que cada pessoa que lê estas linhas sinta-se convidada a refletir, questionar, participar e mobilizar. Porque, no fim, a batalha que travamos hoje não é apenas contra códigos ou plataformas, mas contra a ideia de que podemos ser reduzidos a previsões.

Defender o direito de hesitar, de divergir e de reinventar a vida é defender, acima de tudo, a dignidade de ser humano. E isso começa agora — na forma como decidimos dizer não à passividade, e sim à crítica, à imaginação e à liberdade.

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.

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Last Update: 30/06/2025