O renomado advogado de direitos humanos Geoffrey Nice questionou duramente, em entrevista à Aljazira, o papel da Gaza Humanitarian Foundation (GHF), entidade respaldada pelos governos dos Estados Unidos e de Israel, após a morte de centenas de civis palestinos em torno de pontos de distribuição de ajuda humanitária.

Nice foi categórico ao levantar a hipótese de que a fundação e seus apoiadores possam estar integrados, direta ou indiretamente, a um plano criminoso de remoção forçada ou extermínio por fome da população palestina. A própria imprensa israelense traz entrevistas com soldados que relatam como  as tropas foram instruídas a disparar contra multidões de palestinos e usar força letal desnecessária contra pessoas que não representam nenhuma ameaça.

Desde 27 de maio, pelo menos 583 palestinos foram mortos e 4.186 feridos enquanto esperavam por alimentos em locais de distribuição de ajuda operados pela Fundação Humanitária de Gaza.

“Ajudar e matar ao mesmo tempo é inexplicável”, diz jurista

“É absolutamente estarrecedor que uma organização supostamente voltada a fornecer auxílio esteja envolvida em situações em que centenas de pessoas são mortas durante as operações”, afirmou Nice, que atuou no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.

Para ele, os fatos sugerem que é preciso buscar uma outra motivação por trás dessas ações. “Será que há um objetivo oculto, do qual essa organização participa — de forma consciente ou parcial — como parte de uma estratégia mais ampla?”, questiona o jurista britânico.

Hani Mahmoud, repórter da Aljazira, relatando da cidade de Gaza, disse que o GHF continua sendo a única fonte de alimentos na Faixa, já que Israel continua a impor severas restrições à entrada de suprimentos por outros grupos.

“Muitas pessoas aqui estão tentando ficar longe dos centros do GHF por causa do perigo envolvido em ir até eles por causa dos tiroteios contínuos e deliberados de buscadores de ajuda lá”, disse Mahmoud. “Mas, novamente, ficar longe não é uma resposta, porque se não houver pacotes de comida, significa que as crianças vão para a cama com fome.”

“Se o plano for causar fome, há cumplicidade em crime de guerra”

“Se o objetivo não for o auxílio, mas sim provocar fome ou deslocamento forçado dos palestinos, e se essa organização for parte desse plano, ela é culpada”, declarou, falando de Dubrovnik, na Croácia.

O advogado lembra que os mecanismos anteriores de assistência, coordenados com parceiros locais e agências da ONU, não estavam associados ao nível de mortes que se vê hoje em Gaza.

Fome, bombardeios e demolições: o cerco à população de Gaza

Nesta sexta-feira (28), enquanto a crise humanitária se agrava, cerca de 50 ataques aéreos atingiram a Faixa de Gaza, com foco especial na parte oriental da cidade de Gaza. Os bombardeios destruíram edifícios residenciais, tendas, pontos de coleta de água e pessoas buscando alimentos nas ruas.

Moradores relatam que, em média, cada palestino em Gaza foi forçado a deslocar-se dez vezes desde outubro de 2023, muitas vezes sem acesso a comida, água ou itens básicos de sobrevivência. No norte, a cidade de Jabalia tornou-se alvo de uma nova onda sistemática de demolições de casas, aprofundando o colapso das condições de vida.

Crianças morrem de fome: “muito fracas para chorar”

Além dos bombardeios, a fome se tornou uma arma de guerra. A situação das crianças palestinas é particularmente trágica. Segundo a UNICEF, mais de 5 mil crianças de seis meses a cinco anos foram internadas com desnutrição aguda severa em Gaza.

Ao menos 66 crianças já morreram de fome desde o início da guerra. Médicos locais relatam que os menores chegam aos hospitais sem forças sequer para chorar.

“Com o bloqueio e a fome imposta, as crianças estão cada vez mais fracas”, denuncia Dra. Susan Marouf, da Friends of Patients Medical Society, em Gaza City. “Conseguimos salvar alguns, mas muitos desenvolveram quadros irreversíveis.”

“Esperar que pessoas famintas não ajam com desespero é desumano”

Geoffrey Nice também condena a lógica militar que justifica mortes com base em “comportamentos suspeitos” durante a distribuição de alimentos. Segundo ele, em contextos de fome extrema, as reações são previsíveis e não podem justificar a violência letal.

“Você está lidando com gente faminta. É natural que elas reajam com desespero. Matar essas pessoas sob alegação de que se comportaram de forma ‘estranha’ é inaceitável.”

Uma tragédia anunciada com aval de potências

A entrevista de Geoffrey Nice lança sérias dúvidas sobre a legitimidade das ações humanitárias em Gaza. Ao envolver diretamente a Gaza Humanitarian Foundation e seus patrocinadores — EUA e Israel — em possíveis crimes de guerra, o jurista convoca a comunidade internacional a investigar a intencionalidade por trás das mortes de civis em torno da ajuda humanitária.

Enquanto isso, a situação em Gaza continua se deteriorando, e a cada dia a linha entre ajuda e arma se torna mais turva, como alerta o especialista.

Como funcionam os locais de distribuição de ajuda?

Enquanto a rede de distribuição anterior liderada pelas Nações Unidas operava cerca de 400 locais em toda a Faixa, o GHF, guardado por empreiteiros de segurança privados armados que trabalham para uma empresa dos EUA, montou apenas quatro “mega-sites”, três no sul e um no centro de Gaza – nenhum no norte, onde as condições são mais severas.

Os centros GHF operam de forma irregular, às vezes abrindo por apenas uma hora. Em um caso, um site anunciou sua abertura no Facebook, apenas para postar oito minutos depois que os suprimentos já haviam esgotado.

O acesso a esses centros é perigoso. Os palestinos às vezes devem caminhar muitos quilômetros por zonas de combate ativas, navegar pelos pontos de controle biométricos e levar provisões pesadas de volta para suas famílias.

O sistema, de fato, exclui os mais vulneráveis – incluindo os idosos, feridos e deficientes – que são menos capazes de fazer as viagens.

Ela descreveu uma caixa típica de GHF como contendo 4 kg (8,8 lb) de farinha, alguns sacos de macarrão, duas latas de favas, um pacote de saquinhos de chá e alguns biscoitos. Alguns pacotes incluem lentilhas e pequenas porções de mistura de sopa, mas as quantidades são mínimas.

As próprias caixas de ajuda mal atendem às necessidades de subsistência. Enquanto o Programa Mundial de Alimentos recomenda 2.100 calorias por pessoa por dia, Israel limitou a ajuda a 1.600.

Antes do início da guerra em 7 de outubro de 2023, cerca de 500 caminhões transportando ajuda humanitária entraram em Gaza diariamente. As entregas de ajuda despencaram para menos de 80 caminhões por dia e, em março de 2025, Israel as interrompeu completamente durante um bloqueio de quase três meses em todos os suprimentos.

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Last Update: 29/06/2025