Que país é aquele?

por Jairo Marchesan, Sandro Bazzanella e Cíntia Godoi

            Os europeus chegaram às Américas em 1492 e confrontaram-se com outras culturas que habitavam milenarmente este território. Com sua cosmovisão eurocêntrica, em um processo que, posteriormente, ficou denominado como colonialismo, o qual, foi pautado pela perseguição e limpeza étnica dos povos originários, associado à escravidão e destruição cultural e ambiental sem precedentes.

            Com base em estratégias de alianças forçadas, demarcando a violenta ação colonizadora, articulada para a construção de uma sociedade colonial, se organizou o território dos Estados Unidos da América (EUA), que proclamou a sua “independência” no ano de 1776. Cabe destacar, portanto, que os EUA possuem apenas aproximadamente 250 anos de independência político-administrativa e de país!

Desde o início, a cultura europeia instalada na América do Norte ocorreu por meio do colonialismo, materializado através do saque e da exploração de povos e da natureza, pela incompreensão e consequente desprezo da riqueza e visão de mundo dos povos originários. Dessa maneira, foi se constituindo como uma sociedade que, posteriormente, se estruturou e se apresentou como capitalista, e que, como é característica do capitalismo e das sociedades capitalistas, sejam elas desenvolvidas ou periféricas, organizam-se socialmente a partir da primazia do ter sobre o ser e pela defesa dos próprios interesses em detrimento de outras culturas, povos e do meio ambiente.

            A condição de liderança geopolítica pós-Segunda Guerra Mundial se concretizou por alguns aspectos, dentre eles, pelo envolvimento dos EUA na referida guerra como fornecedor em massa de armamentos militares para o eixo da resistência ao nazifascismo, além do fato de não terem seu território envolvido no conflito.

            Estas condições fizeram com que os EUA constituíssem um complexo industrial militar após a Segunda Guerra Mundial que lhes permitiu construir mais de 700 bases militares mundo afora, ter 40% de seu PIB vinculado à produção de armas e artefatos de guerra, vendidos a países como forma de promover a defesa e sustentar conflitos. Soma-se a isto o Plano Marshall[1] de reconstrução da Europa e do Japão financiado pelos EUA, a partir dos extensos fundos financeiros constituídos através dos lucros auferidos durante o transcurso da guerra e no período seguinte.

            Como é de praxe, a produção e acumulação da riqueza e, por consequência, a constituição de um império político, econômico e militar, não ocorreu somente por meio do trabalho e da poupança, mas, sobretudo, pela exploração do trabalho humano alheio, pela pilhagem e expropriação da natureza e pela intromissão, invasão política, econômica e militar de outros países e a consequente submissão de seus povos.

            Para isso, se utilizaram da força militar e da constituição de empresas, corporações, de grandes conglomerados capitalistas (petroleiras, químicas, siderúrgicas, bélicas, de comunicação, alimentos, dentre outras) para agir e extrair matérias-primas, beneficiando-se com a venda de seus serviços e produtos, bem como, expatriando com os lucros expropriados dos povos submetidos sob sua lógica imperialista.

            Então, de forma complementar, durante estes poucos mais de 200 anos, financiou e praticou golpes de Estados e guerras mundo afora. A título de exemplo, um destes golpes foi o golpe civil, político, empresarial e militar implementado no Brasil a partir de 31 de março de 1964, que perdurou 20 longos anos com perseguições, torturas, assassinatos e censura às pessoas e setores da sociedade brasileira que o denunciavam.

            Ainda nesta direção, ao longo da sua trajetória histórica e afirmação política, econômica, administrativa e militar, impôs a outros povos, com o evidente consentimento das elites e dos governos nacionais, mecanismos educacionais, religiosos, culturais e, principalmente econômicos, como formas de cooptação, dominação e posterior exploração.

            Igualmente, difundiu um estilo de vida calcado na intensa e extensa exploração, da plena produção, da ostentação, do consumismo e do descarte. Na mesma direção, ditou a língua (inglesa), a moeda (dólar) e a cultura (música, indústria cinematográfica, etc.), influenciando, contagiando e “norteando” a cultura de outros povos para atender seus interesses.

            Para isso, diversos instrumentos foram utilizados, dentre eles, acordos com as elites nacionais, neste caso, brasileiras, para sequestrar o Estado nacional, em conluio com as velhas oligarquias escravocratas, com instituições como o Exército, e atuaram para perseguir, torturar e eliminar brasileiros que almejavam a construção democrática e participativa de um país autônomo em seu desenvolvimento socioeconômico e soberano em suas decisões estratégicas nacionais e globais.

            Assim, tais elites agiram sorrateiramente como lacaias, submetendo o país aos interesses externos, a processos de endividamento como forma de expropriação da riqueza e da soberania nacional promovendo o subdesenvolvimento, à dependência externa e, por consequência, ao empobrecimento sociocultural e sofrimento do seu povo.

            Regionalmente, conhecemos essa história, contudo, é sempre bom lembrarmos: no Planalto Norte Catarinense, havia uma das maiores florestas do mundo – a Floresta Ombrófila Mista (FOM), composta de araucárias, imbuia, cedro e outras variedades. Por conta disso, entre os anos de 1904 a 1910, um dos empresários daquele país, Percival Farquhar (1864 – 1953), conhecido nestas terras como o “Dono do Brasil”, construiu a Ferrovia São Paulo – Rio Grande, e instalou no atual município de Três Barras (SC) a maior serraria da América Latina – a Lumber Company. Por estes e outros fatores, gerou-se a Guerra do Contestado (1912 – 1916), responsável pela morte de aproximadamente 20 mil pessoas, que deixou rastros de destruição ambiental e resquícios socioeconômicos regionais extremamente negativos até a atualidade. Como não saber, reconhecer e rememorar estas tragédias?

            Quantas ameaças, interferências, bloqueios e sanções, de toda ordem, os sucessivos governos dos EUA realizaram e realizam sobre governos e povos do Planeta, impedindo-os de viverem ou desenvolverem seus projetos e modos de organização e de vida?

            Além disso, praticamente em todos os conflitos do mundo, lá estão, de modo direto ou indireto, intervindo, apoiando, financiando ou, ainda, fazendo a guerra de fato. O genocídio da Faixa de Gaza é o brutal exemplo de financiamento norte-americano ao Estado de Israel para a limpeza étnica em curso naquela região do mundo.

            O enriquecimento dos Estados Unidos passa, portanto, pela guerra e pela intromissão na vida de outros povos. Lembremos de apenas de alguns dos golpes de Estado e financiamentos de ditaduras militares da América Latina ao longo do século 20: Cuba (1898); Paraguai (1954 – 1989); Brasil (1964 – 1985); Argentina (1976 – 1983); Uruguai (1973 – 1985); Chile (1973 – 1990). Além destes, podemos citar outras grandes guerras: a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), do Vietnã (1959 – 1975), de Kosovo (1998 – 1999), do Iraque (2003 – 2011), do Afeganistão (2001 – 2021), da Líbia (2015 – 2019), entre tantas outras.

            As guerras são negócios lucrativos, especialmente aos donos do capital. Para tanto, há a necessidade de inventar e justificar motivos para realizá-las, invadir territórios e destruir para, posteriormente, pilhar e, em seguida, reconstruir para lucrar ainda mais.

            Desta maneira, ao longo deste período de aproximadamente 250 anos, constituiu-se uma supremacia Estadunidense, principalmente pela força política, militar e econômica, por meio das agências financeiras – Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird) ou Banco Mundial (BM), entre outras agências e organismos mundiais.

            Cabe destacar que a propaganda que culminou na criação das grandes instituições financeiras internacionais estava ligada ao debate do desenvolvimento. As Organizações das Nações Unidas (ONU) foram criadas após a Segunda Guerra, com o discurso de proteger o mundo de um novo conflito e de levar desenvolvimento para todos os países, bem como, apoiar a reconstrução daqueles que tinham sido devastados pelas guerras. Estas organizações, no entanto, para além do discurso, criaram instrumentos de capilarização do modo de vida capitalista e do endividamento de diferentes povos.

            Com isso, houve imposições à sociedade: a moeda daquele país – o dólar (US$) – foi imposta ao mundo como moeda fiduciária, desvinculada de lastro físico (reservas de ouro nos cofres do país). Seu lastro se constituiu a partir das imposições econômicas, acompanhadas de ameaças militares constantes em todo o Planeta. Assim, o dólar foi imposto como moeda internacional dominante e, consequentemente valorizada em relação a outras moedas.

            Desta maneira, cabe o seguinte questionamento: É possível estabelecer relações comerciais equitativas ou, quiçá, competir em tal contexto? A imposição do dólar como moeda dominante faz dos EUA o grande agiota global, que extorque percentuais de todas as transações comerciais mundiais, drenando recursos financeiros de todo mundo, o que lhe permite sustentar sua força militar global e sua sociedade de pleno e faustoso consumo.

            A partir desta trajetória, hoje os Estados Unidos possuem um território com área de 9.867.000 Km², que representa aproximadamente 6% do Planeta. Sua população, de 340,1 milhões de habitantes, é responsável pela emissão de 25% dos gases poluentes na atmosfera, além da destruição ambiental dentro e fora de seu país. Então, cabe mais um questionamento: Será que os líderes estadunidenses se consideram os donos ou os imperadores do mundo?

            A partir dos argumentos anteriores, precisamos considerar que os EUA são um Estado imperial sobre outros povos do mundo. Sua hegemonia mundial se sustenta a partir do complexo financeiro que beneficia suas decisões políticas e militares, da mesma forma que a partir do complexo das corporações da comunicação – suas big techs –, multinacionais que conferem concentração de poder a um Estado policial que dita regras, sanções e agressões militares sobre povos e países que supostamente apresentam contraposições aos seus interesses estratégicos.

Por estas e outras, os EUA tornaram-se um império financeiro, comunicacional, político, econômico e militar. Neste sentido, sabemos que, assim como outros Impérios (Romano, Inglês), estes tiveram ascensão, auge e decadência. Tais impérios se constituem em determinado momento e, sob determinadas circunstâncias, desfrutam de seu apogeu e, finalmente entram em declínio, abrindo espaço para a ascensão de outras possibilidades de organização social.

O que se discute na atualidade é que o império americano está entrando em fase de declínio. Interessante observar que, em relação aos impérios que o antecederam, o tempo de hegemonia dos EUA se apresenta relativamente breve.

            Nesta direção, nas últimas três décadas, principalmente, percebe-se a profunda crise do regime de acumulação do capital norte-americano. Logo, observam-se os movimentos de reação dos representantes do capital daquele país a qualquer custo. Recentemente, o atual presidente dos EUA imputou um conjunto de violentas medidas alfandegárias, denominado de “Tarifaço”, que representa tarifas sobre a importação e a exportação de produtos e serviços, que implicam diretamente sobre a vida de outros povos.

            O “tarifaço” apenas expressa o modus operandi do império, já manifestado em muitos acordos internacionais, tais como o Protocolo de Kyoto, de 1997, e a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (2015), entre outros, visto que é um país que, ou impõe seus interesses, ou não respeita e/ou não assina os acordos entre nações que não julgar convenientes para seus interesses, mesmo que isso coloque em risco a continuidade da vida.

            Mas, então, como explicar que grande parte da sociedade, inclusive representada por letrados, professores, pesquisadores e ideólogos deste violento e nocivo modelo de desenvolvimento capitalista, defende e idolatra um regime de produção e acumulação tirano, belicista, nocivo e destruidor das relações humanas entre si e das demais formas de vida? Em que preceitos e fundamentos se amparam tais defensores?

            A crítica que se faz não é em relação ao povo estadunidense, sobretudo os trabalhadores e os comprometidos com as causas humanitárias, sociais e ambientais, mas, sim, ao modelo e aos poderes administrativos ou privados – ideológicos, políticos, econômicos, belicistas e outros –, que coordenam e executam ações violentas e truculentas em nome do progresso e do crescimento econômico a qualquer custo, da acumulação e consequente destruição humana e de outras formas de vida.

A trajetória de organização da sociedade dos Estados Unidos, bem como sua atuação na cena internacional demonstram de forma inequívoca e clarividente, que seu modelo de sociedade e, suas formas de relação com outros povos e países, não se apresenta suficientemente respeitosa e promotora de desenvolvimento, ou seja, não parece ser um modelo de sociedade que nos conduzirá a dias melhores.

            E, para além da crítica ao modo de vida assumida por um país imperialista, é preciso questionar: “Que país é aquele?”. É preciso aprofundar o questionamento de qual país é o nosso e qual país queremos para nós!

             Por fim, é preciso considerar que em vez de assumirmos modelos e agendas exógenas, sobretudo, apresentadas pelas Organizações das Nações Unidas ou outras, é preciso considerar que estas estão ligadas a modelos hegemônicos de desenvolvimento que desconsideram conformações sociais e políticas singulares de povos e países. Por isso, é preciso tê-las no radar e aprofundar as discussões do modelo de sociedade que interessa aos brasileiros.

Dr. Jairo Marchesan. Geógrafo e Professor.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella. Filósofo e Professor.

Drª. Cíntia Neves Godoi – Geógrafa e Professora


[1] Programa político e econômico e de financiamento financeiro dos Estados Unidos, desenvolvido entre os anos de 1948 a 1951, para reconstruir a Europa pós-Segunda Guerra Mundial e evitar a expansão do socialismo. O nome atribuiu-se ao general George Marshal, Secretário de Estado Americano.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 27/06/2025