A guerra entre Israel e Irã: uma “crise do homem?[1]
por Jânia Saldanha[2]
Vivemos um tempo em que, mais uma vez, a razão foi curvada diante da força. O argumento do risco futuro — elevado à condição de destino inevitável — tem servido como justificativa para a produção deliberada de sofrimento e a morte de povos inteiros. A guerra recentemente deflagrada por Israel contra o Irã, em 13 de junho de 2025, e qualificada por seus próprios autores como uma “guerra preventiva”, não é apenas uma tragédia regional. Ela representa a tentativa de Benjamin Netanyahu de se consagrar como o arquiteto supremo de um suposto “novo Oriente Médio” [3], edificado, mais uma vez, sobre os escombros da legalidade internacional e da debilidade da diplomacia; é o sintoma mais agudo de uma crise profunda da humanidade.
Como afirmou Albert Camus em sua conferência La Crise de l’Homme, em 1946[4], se não cremos em nada, se nada tem sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, então “se tudo é permitido, nada tem importância”. E quando nada tem importância, o homem deixa de ser fim e torna-se apenas meio — meio para o poder, para a vingança, para a eficácia de outra guerra[5].. A guerra, então, deixa de ser uma exceção monstruosa e passa a ser a linguagem cotidiana entre os Estados, em que discutir o real sentido do jus ad bellum – a guerra como um fenômeno sempre mortífero – é obscurecido pelo jus in bello – importa apenas o que se faz no interior dela.
A erosão dos limites morais da política é o verdadeiro campo de batalha. Nesta guerra, como em tantas outras, a escolha que se impõe às vítimas é simples e brutal: ser cadáver ou cúmplice. E como Camus advertiu, é nessa lógica binária — de vítimas e carrascos[6] — que o mundo se perde. Uma vez que deixamos de crer em qualquer valor superior à força, o silêncio[7] se instala entre os homens. Camus[8] perguntou se há uma crise do homem? Ele respondeu: sim, há uma crise do homem, “já que a morte ou a tortura de um ser pode, em nosso mundo, ser observada com indiferença, com interesse amigável, com espírito de experimentação ou simples passividade”. A comunicação por meio da diplomacia — aquilo que ainda poderia nos salvar da barbárie desta guerra — se desfaz quando Estados que poderiam ter levantado suas vozes imediatamente, como aqueles que formam a União Europeia, se viram intimidados pela ideia de desgastar, ainda mais, suas relações transatlânticas[9]. No entanto, é importante reconhecer que, nos últimos dias, os ministros das Relações Exteriores dos países da União Europeia se reuniram para indicar a saída diplomática como solução para o conflito. E fizeram isso, não por acaso, após Donald Trump declarar no sentido de que a Europa “não decide nada”. Esse movimento europeu, ainda que tardio, deve ser valorizado como um sinal de resistência à lógica da guerra como linguagem política.
Muito já se disse desde a eclosão da guerra: que ela viola frontalmente o direito internacional, que contraria os princípios e as regras estabelecidos na Carta das Nações Unidas e colide com a jurisprudência consolidada pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), segundo a qual a chamada “guerra preventiva” carece de qualquer amparo jurídico legítimo. É verdade! A ordem dada pelo presidente Donald Trump, em 22 de junho, para que as forças militares dos Estados Unidos atacassem o Irã, não apenas confirma o desprezo pelas normas elementares do direito internacional, como ignora de forma explícita a decisão histórica da Corte no caso Nicarágua vs. Estados Unidos da América[10], de 1986. Naquele julgamento, a CIJ foi inequívoca ao afirmar que o direito à legítima defesa preventiva é uma exceção extrema e só pode ser invocado diante de uma agressão armada iminente.
Foi exatamente essa alegada ameaça iminente que fundamentou a atual ofensiva israelense — o mesmo argumento utilizado pelos Estados Unidos em 2003 para justificar a invasão do Iraque, cuja consequência, como se sabe, foi a destruição quase total do país, o colapso de sua estrutura social e institucional e, antes de tudo, milhares de mortos. Recorrer novamente a esse tipo de justificativa reabre uma ferida sempre latente: a da legalidade seletiva — onde o direito internacional se torna maleável nas mãos dos mais fortes, adaptado aos seus interesses e conveniências estratégicas.
Por outro lado, não se pode ignorar a realidade interna do Irã. O regime teocrático que vigora no país há décadas, marcado por autoritarismo, repressão às liberdades civis, instrumentalização religiosa do poder, crimes de Estado e mortes, merece crítica contundente e resistência interna e internacional. A existência de uma teocracia, porém, não justifica nem legitima a guerra. Mas não se pode silenciar diante dela. A luta contra o autoritarismo precisa ser feita com princípios, com justiça, com a força do direito e das forças vivas da sociedade — não com bombas assassinas.
O problema de fundo não é apenas jurídico-político. É existencial. A guerra, como lembra Frédéric Gros em seu livro Pourquoi la guerre?, é antes de tudo uma forma de pensamento, pois ela apresenta “razões”, “justificações”, “desculpas” [11]. Não é uma consequência inevitável apenas da política, mas um modelo mental que separa o mundo em identidades fixas e irreconciliáveis. É a absolutização do inimigo. A guerra, escreve Gros, “exige aparecer como uma reação a uma injúria (uma injustiça), a uma negação do direito, ela se apresenta sempre como defensiva, punitiva e salvadora” [12]. Este é o ponto em que as nações se fecham em suas invenções unilaterais, e a morte se torna uma linguagem legítima de afirmação de soberania e da paz.
Por isso, não basta denunciar as ilegalidades ou lamentar os mortos. É preciso reconstruir o valor da justiça como ferramenta internacional. Para os crimes mais graves — crimes de guerra, crimes contra a humanidade, genocídios — previstos no Direito Internacional Humanitário e no Estatuto de Roma, é imperativo reforçar o papel do Tribunal Penal Internacional (TPI) e cumprir os seus mandados. Não se trata apenas de punir culpados, mas de reafirmar um princípio: nenhum Estado, por mais poderoso, pode estar acima da lei criada pelo conjunto de Estados. A justiça internacional não é um ornamento caro, mas uma das últimas defesas de instituições criadas por mulheres e homens contra a barbárie organizada. A comunidade internacional, portanto, deve fazer mais do que apelos genéricos à paz. Deve assumir uma posição firme em defesa das instituições multilaterais, do direito internacional e da responsabilização dos criminosos de guerra.
Nesse cenário, a trégua forçada pelos Estados Unidos entre Israel e Irã, embora frágil e motivada claramente por interesses geopolíticos, deve ser acolhida como um caminho de esperança. Não apaga os crimes, não resolve o conflito, não corrige os erros — mas é a clareira no meio da destruição e da barbárie. É uma oportunidade, ainda que breve, para que a razão se recomponha, a diplomacia volte a ocupar o lugar da violência e vidas humanas sejam salvas.
É por isso que devemos lutar contra a injustiça, a servidão e o terror, como disse Camus[13]. Um planeta dividido entre senhores e escravos, onde a força é o farol e o único futuro é o medo e a destruição daquilo que de melhor a humanidade construiu, de fato, não pode ser um destino, mas sim uma rota a ser firmemente rejeitada.
[1] Este texto começou a ser escrito antes do cessar-fogo ocorrido em 23 de junho de 2024. Deliberadamente, o tempo verbal não foi alterado para o passado, porquanto o fenômeno guerreiro, seus efeitos devastadores para o presente e o futuro, persistem.
[2] Livre-Docente em Direito Internacional do IRI/USP. Doutora em Direito. Professora do PPG em Direito da Escola de Direito da UNISINOS. Advogada.
[3] STETLER, Harrison. As Trump and Netanyahu Push for War, Europe Is Once Again Silent. The Guardian, 23 jun. 2025. Disponível em: https://www.thenation.com/article/world/israel-iran-trump-middle-east-diplomacy/?utm_source=Sailthru&utm_medium=email&utm_campaign=Daily%205.23.2025&utm_term=daily
[4] CAMUS, Albert. La crise de l’Homme, p. 3. Texto original da conferência apresentada por Camus no Teatro MCMillin da Columbia University em Nova York, em 28 d emarço de 1946. Disponível em: https://www.nazioneindiana.com/wp-content/2013/10/la-crise-de-lhomme-camus.pdf. Acesso em 23 de jun de 2025.
[5] Desde que a guerra contra o Irã foi deflagrada, é perceptível que o genocídio que Israel pratica em Gaza, deixou de ocupar as manchetes dos principais jornais internacionais. No dia em que este artigo é escrito, 23 de junho de 2025, nenhum dos jornais da grande mídia internacional publicou notícias sobre a guerra em Gaza, com destaque.
[6] CAMUS, Albert. La crise de l’Homme, p. 4
[7] CAMUS, Albert. La crise de l’Homme, p. 4.
[8] CAMUS, Albert. La crise de l’Homme, p. 2.
[9] STETLER, Harrison. As Trump and Netanyahu Push for War, Europe Is Once Again Silent, op. cit.
[10] COUR INTERNATIONAL DE JUSTICE. Cas Nicaragua vs. États-Unies d’Amerique, 27 jun. 1986. Disponível em: https://www.icj-cij.org/fr/node/103143. Acesso em 23 jun. 2025.
[11] GROS, Frédéric. Pourquoi la guerre? Paris: Albin Michel, 2023, p. 11.
[12] GROS, Frédéric. Pourquoi la guerre? Paris: Albin Michel, 2023, p. 11.
[13] CAMUS, Albert. La crise de l’Homme, p.
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