A política como performance de ressentimento

por Eliseu Raphael Venturi

Há momentos em que a política deixa de ser o espaço da divergência para se tornar o palco de uma ferida. Não uma ferida a ser cuidada, mas uma ferida exposta, inflamada, instrumentalizada. Ela não pede escuta, tampouco reparação — apenas clama por vingança. Nesse cenário, o gesto político não é a construção de um futuro comum, mas a dramatização de um passado ressentido, sempre pronto a converter dor em retaliação. O ressentimento, nesse caso, não é efeito: é método.

Chamar isso de política é aceitar que o campo do comum foi tomado por uma performance. Uma encenação que, embora finja representar o povo, movimenta-se no plano íntimo do orgulho ferido, da mágoa convertida em linguagem pública. O sujeito político que emerge aí não é o cidadão, mas o ressentido legitimado — aquele que não deseja igualdade, mas reparação simbólica por um privilégio que julga ter perdido. E, mais ainda, quer fazer disso uma norma.

Essa política do ressentimento não se alimenta de ideias, mas de afetações. Sua força não está na argumentação, mas na mobilização do rancor. A linguagem se torna o lugar da revanche, e não da escuta. As palavras não propõem, apenas demarcam quem deve falar e quem deve calar. O dissenso, que deveria ser o motor da democracia, é transfigurado em ameaça, e o debate, em campo de batalha moral.

Diante desse cenário, os mecanismos institucionais são corroídos por dentro. O que antes era espaço de representação passa a ser palco de dramatização permanente. A figura política performa o colapso, encena sua própria impotência, mesmo quando ocupa o centro do poder. A fantasia de exclusão opera como legitimadora do desejo punitivo. E o ressentimento torna-se, ele próprio, projeto de governo.

Mais do que um fenômeno discursivo, trata-se de uma mutação estrutural da gramática política. O que antes era conflito de interesses agora se traduz em duelo de identidades feridas. Já não se trata de disputar o futuro, mas de corrigir o passado. A política deixa de ser mediação e passa a ser um acerto de contas. O gesto público se transforma em grito particular. E o grito, neste caso, não exige escuta — exige submissão.

Por isso, o ressentimento, quando toma a política, desativa a linguagem do vínculo. Destrói o intervalo entre as falas, o tempo da dúvida, o espaço do outro. Toda fala vira acusação. Toda escuta, fraqueza. A convivência se desmancha sob o imperativo de um gozo punitivo, que encontra prazer na exclusão, excitação na censura e catarse na humilhação do outro. A moral se torna código de guerra, e a ética, uma lembrança distante.

Esse tipo de política não se sustenta por si — ela depende da encenação contínua da sua ferida. O sujeito ressentido precisa lembrar a todos, o tempo todo, do que perdeu. Precisa do inimigo para existir. Precisa que alguém seja apontado como a causa de sua dor. E quanto mais performa essa dor, mais se autoriza a violência. Afinal, quem sofreu pode tudo. E quem ousa não concordar, só pode ser cúmplice da opressão.

A democracia, nesse campo, se torna disfuncional. Não porque há conflito, mas porque o conflito é capturado por uma lógica que recusa o comum. A alteridade é interditada. O desacordo vira ruptura. A diferença vira crime. Não há negociação possível com quem se vê como única vítima legítima da história. E toda tentativa de mediação é tratada como traição.

É nesse contexto que se torna urgente nomear o ressentimento como estrutura da ação política contemporânea. Não para invalidá-lo, mas para compreendê-lo como sintoma de uma falência simbólica maior. Uma falência da escuta, da palavra compartilhada, do pacto civilizatório. Nomear não é acusar — é desvelar. É restituir à linguagem a sua função: tornar possível aquilo que o ressentimento deseja interditar.

Porque, diante da performance ressentida, a verdadeira resistência não será gritar mais alto, nem acusar de volta. A resistência simbólica, aquela que sustenta a democracia como horizonte possível, está em outro gesto: o de sustentar a presença do outro mesmo quando o outro só deseja nossa ausência. Isso não é concessão — é aposta. Não é passividade — é ato.

Esse ato não se faz sozinho. Requer escuta, hesitação, construção de linguagem. Requer um esforço de manter vivo o espaço simbólico onde o desejo de vingança não seja a única forma de dizer a dor. Talvez aí se reencontre a política — não como espetáculo de mágoas, mas como possibilidade de convivência entre o que não se encaixa.

E se esse gesto ainda parecer frágil, é porque ele não se ampara no grito, mas na escuta. E a escuta, embora silenciosa, carrega a força de tudo o que o ressentimento tenta apagar: a confiança de que, mesmo sem acordo, a linguagem ainda pode fazer mundo.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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Last Update: 27/06/2025