A linguagem contra a tirania do útil¹

por Roberto César Cunha e Maria Eliana Alves

A linguagem é a prática concreta da consciência que se realiza no mundo. Ela não é mero veículo neutro da comunicação, mas o próprio território em que se travam os embates da produção e da apropriação do conhecimento, das formas de viver e de pensar. Como expressão prática da civilização, a linguagem acompanha o seu desenvolvimento histórico, ganhando em complexidade e densidade à medida que as relações sociais se tornam mais mediadas, mais contraditórias e mais demandantes de reflexão. Este pequeno ensaio propõe-se a discutir o papel da linguagem no cotidiano e no ambiente acadêmico, sublinhando a função da linguagem como espaço de resistência contra o automatismo e a reprodução acrítica, sem o que o ato docente se converte em sua própria eutanásia simbólica.

No cotidiano, a linguagem é marcada por sua funcionalidade direta, por sua orientação prática e sua economia de sentidos. O ato de dizer ao padeiro “me venda dez reais de pão” cumpre, com precisão quase automática, a finalidade da troca. Trata-se de um ato ilocucionário perfeito, na acepção de “Quando Dizer é Fazer” de John Austin, pois a enunciação realiza sua função ao mesmo tempo em que é proferida, sem margem a ambiguidades interpretativas. O padeiro não hesita, não questiona o pedido, não filosofa sobre a motivação do cliente; ele apenas cumpre o rito da economia doméstica. A linguagem cotidiana está, como observa “Pensamento e Linguagem” de Vygotsky, profundamente vinculada ao contexto imediato da ação: ela surge das necessidades concretas e se limita ao universo de significados que garantem a execução eficiente da tarefa.

De modo semelhante, o manual de instruções para montagem de um ventilador organiza seus enunciados em uma cadeia de comandos cuja função é excluir a ambiguidade. Não se espera do leitor do manual a reflexão sobre os princípios físicos que regem o funcionamento do aparelho, mas a obediência à sequência prescrita. A linguagem cotidiana tende a se organizar como um discurso fechado, no qual a prática social se reduz ao cumprimento de funções e papéis, deixando pouco espaço para a problematização.

Assim sendo, esse fechamento da linguagem cotidiana, quando transposto ao campo do saber, tem consequências materiais e simbólicas graves. O padeiro entrega o produto sem exigir hermenêutica, pois o contexto compartilhado e convenções sociais estabilizam o sentido. Esta economia linguística, funcional para ações imediatas, converte-se em cárcere epistemológico quando transposta à academia. O mesmo padeiro, agora aluno, confronta-se com a pergunta freireana: “Que interseções entre economia do trigo, geografia urbana e afetividade determinaram a escolha desta padaria entre quinze no bairro?”. Ao coçar a cabeça para tentar responder, o aluno simboliza o colapso do pragmatismo ante a exigência reflexiva. Esse gesto desvela a natureza constitutiva da linguagem acadêmica.

Com o avanço da civilização técnica, tão bem dissecado por “Minima Moralia” de Adorno, instaurou um fascínio pelo mundo administrado, no qual o saber se converte em ferramenta para o domínio e a eficiência. Este encanto técnico repousa na promessa de soluções rápidas, no apagamento das contradições e na substituição da reflexão pelo cálculo. Como observa a “Teoria do Agir Comunicativo” de Habermas, trata-se da hegemonia da racionalidade instrumental sobre a comunicativa, em que a linguagem se torna mera engrenagem do sistema, empacotando o sentido em formatos prontos para o consumo.

Nesse contexto, a linguagem é elevada a modelo ideal: o dizer que já faz, que já realiza, que prescinde da dúvida. Essa técnica do enunciado eficaz (modelo), tão valorizada no cotidiano funcional, seduz também as práticas pedagógicas, que, por vezes, cedem ao apelo da resposta certa, do manual normativo, da aula como protocolo. Mas o que se perde é justamente o que de Vygotsky define como a mediação simbólica essencial ao pensamento: a linguagem como processo que reconfigura o mundo e não como simples instrumento de descrição ou controle.

Esse processo torna-se visível em episódios como o fechamento da graduação em Linguística na USP, símbolo do avanço da lógica mercadológica sobre saberes não utilitaristas, em que a linguagem é reduzida a mero artefato técnico, negando-se sua potência crítica e emancipadora. A desvalorização do saber linguístico, sua redução a uma função puramente técnica e a perda do reconhecimento de sua potência crítica e formadora são expressões claras do triunfo da lógica da funcionalidade sobre a reflexão e sobre a autonomia do pensamento.

Em contraste, a linguagem na sala de aula e nos textos que pretendem ultrapassar o senso comum precisa se constituir como campo aberto à interpretação, à dúvida, ao diálogo criador. Ao convocar o aluno a refletir sobre as razões que o levaram a escolher uma padaria em detrimento de outras quinze no bairro, o professor desloca o uso da linguagem da função meramente instrumental para o terreno da reflexão crítica. Esse movimento é, como nos lembra Paulo Freire, o próprio ato pedagógico é ensinar a criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção, e a linguagem, nesse processo, é condição e mediação essencial.

Para Vygotsky, a linguagem assume papel central na constituição do pensamento: não há pensamento que se emancipe do imediato sem a mediação dos signos linguísticos, que permitem ao sujeito reconstituir simbolicamente o mundo e, assim, reconfigurá-lo. A linguagem acadêmica e docente, por isso, não pode se contentar com a clareza do comando ou a precisão da ordem. Ela deve ser densa, polissêmica, porosa, capaz de abrir os múltiplos caminhos do pensamento e de convidar o interlocutor à tarefa de reconstrução do sentido.

Em oposição ao encanto técnico ergue-se a cognoscência reflexiva, que implica o esforço de habitar o sentido e não apenas utilizá-lo. Na “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire lembra que a educação autêntica exige a superação do discurso da eficácia pela palavra problematizadora, aquela que não se contenta com a aparência, mas busca as razões de ser das coisas. A cognoscência reflexiva, assim, desafia o paradigma técnico, na medida em que aposta na incerteza criadora, não visa ao imediato, não aceita o mundo como dado e não compactua com o silêncio das estruturas.

Enquanto o encanto técnico transforma o conhecimento em produto, a cognoscência reflexiva o compreende como processo em permanente inacabamento. Por isso, uma linguagem de textura labiríntica e sintaxe intrincada constitui antídoto contra o esvaziamento do sentido: nela rompe-se o automatismo, insinua-se a pergunta no lugar da certeza e afirma-se a resistência à conversão do intelecto em peça funcional de um sistema que tudo reduz à mera utilidade pragmática.

A sobrevivência do intelectual reside nesta capacidade de contaminar o pragmático com o problemático. Quando o professor, ao receber o pão, inquieta o padeiro com “Qual o peso do trigo ucraniano nesta baguette?”, ele pratica não mera provocação, mas um ato de ressurreição epistemológica. A linguagem acadêmica autêntica recusa a servidão ao imediato; sua textura labiríntica e sintaxe intrincada são anticorpos contra o esvaziamento do sentido.

Aceitar a colonização do espaço reflexivo pela lógica das respostas rápidas é pactuar com a própria eutanásia profissional – morte lenta do pensamento que transforma salas de aula em balcões de transação e manuais em dogmas, uma vez que, “a linguagem carrega a ontologia de quem a manipula”, como dizia Tzvetan Todorov. Transformar cada “onde está a resposta certa?” em “que perguntas este silêncio esconde?” é o único antídoto contra a asfixia do intelecto pela tirania do útil.

Nota

1 Referências ultilizadas para embasar as opiniões contidas no texto: ADORNO, Theodor W. Minima
moralia: reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1995; AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer.
Porto: Edições 70, 1962; FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987;
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. v. 1. São Paulo: Martins Fontes, 1984; VYGOTSKY,
Lev S. Pensamento e linguagem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Roberto César Cunha – Geógrafo, Doutor e pós-doutor em Geografia. [email protected]

Maria Eliana Alves – Pedagoga, mestra e doutoranda em educação. [email protected]

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Last Update: 27/06/2025